Estante

Nunca fui aluno e tampouco orientando de Fernando Novais, de quem agora se publica esse Aproximações por iniciativa muitíssimo louvável de discípulos que assistiram a seus cursos e tiveram o privilégio de desenvolver seus trabalhos em contato íntimo com o mestre. Como estudante no Departamento de História da USP, pude contudo testemunhar sua ascendência intelectual sobre várias gerações de professores e alunos. Sua tese de doutorado, Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial, 1777-1808, defendida em 1973 e publicada em 1979, é um marco na compreensão de nossa história e, como já apontado muitas vezes, pode sem favor ser colocada lado a lado com as obras clássicas de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. Enfim, seu trabalho é um dado incontornável, aceite-se ou não o nervo de seus argumentos.

Quais são eles? Para entendê-los, é preciso ir além das rotinas do curso de História e notar que foi decisiva na formação intelectual do autor a experiência do grupo de leituras de O Capital, reunindo jovens professores e alguns alunos adiantados de várias disciplinas da USP, no final dos anos 1950 e início dos 1960. A simples menção a alguns de seus participantes pode dar uma idéia da influência que o grupo exerceu posteriormente: além de Fernando Novais, José Arthur Giannotti, Ruth e Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Paul Singer, Ruy Fausto, Bento Prado Jr., Roberto Schwarz, Francisco Weffort e Michel Löwy, entre outros.

Quando eles começaram a se reunir, o marxismo brasileiro ainda se encontrava em grande parte na órbita oficial da cartilha do PC sovié­tico ou era ensinado nos cursos da universidade como um método entre outros. Roberto Schwarz lembra contudo que o clima histórico suscitava iniciativas ousadas no campo da esquerda1. O fim do stalinismo convidava à afronta ao “monopólio exegético que os partidos comunistas haviam conferido a si mesmos em relação à obra de seus clássicos”. A Revolução Cubana de 1959 foi outro estímulo para a crítica do marxismo oficial, “pois não foi feita por operários, não foi dirigida pelo Partido Comunista e não respeitou a seqüência de etapas prevista na teoria. A sua grande repercussão quebrou a redoma localista em que vivia a imaginação latino-americana, a qual se deu conta, com fervor, de que era parte da cena contemporânea e de sua transformação, e até portadora de utopia”. No âmbito doméstico, os “50 anos em 55” do presidente JK pareciam sacudir o atraso e empurravam o país para a dinâmica que desembocou no golpe de 1964. Foram anos em que a cultura brasileira conseguiu articulações felizes entre o nacional e o internacional. Basta lembrar que em 1956 é publicado Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Na mesma época, o Teatro de Arena começava a encenar suas inovações em temas e formas. Na poesia e nas artes, a polêmica entre concretismo e neoconcretismo revitalizava o ambiente para além de questões paroquiais. Chega de Saudade, de João Gilberto, álbum-manifesto da bossa nova, é de 1959. E, talvez como ápice de tudo, a construção de Brasília, afirmando de vez a marca da arquitetura brasileira no panorama mundial.

O trabalho de Fernando Novais pode ser visto desse contexto, pois, durante as leituras e discussões de seu grupo, começou a parecer possível aos participantes um marxismo heterodoxo – inclusive em relação a postulados do próprio Marx – que, além do mais, pudesse explicar nosso passado colonial e os impasses do presente à luz da história do capitalismo. O que resultou em “uma intuição nova do Brasil”. Ainda nas palavras de Roberto Schwarz: “Se em última análise o capitalismo é incompatível com a escravidão, e acaba por liquidá-la, por momentos ele também precisou, para desenvolver-se, desenvolvê-la e até implantá-la. De sorte que nem ele é tão avançado, nem ela tão atrasada. Assim, a escravidão podia ter parte com o progresso, e não era apenas um vexame residual”.

Podemos agora entrar em Aproximações, cuja primeira parte, afora alguns textos avulsos do autor, mostra a longa e cuidadosa gestação de sua tese clássica de 1973, partindo de um ponto de vista que começou a se formar precocemente, antes mesmo do seminário Marx. Veja-se nesse sentido o ensaio “Colonização e desenvolvimento econômico”, de 1957.

Ainda nessa primeira parte, fica nítido o gosto do autor por situações e personagens-limite, em que as tensões históricas afloram em sua plenitude, revelando o esgotamento do passado e abrindo um leque de possibilidades futuras por onde se encaminhará a História. Assim, por exemplo, com a figura polêmica do marquês de Pombal (1699-1782) e, notadamente, com a crise das estruturas do Antigo Sistema Colonial, da qual surgiu o Brasil como nação. A cavaleiro dessas situações-limite está sempre a capacidade excepcional do autor de transitar por vários níveis da História, articulados em seu objeto de estudo pelo conceito de Antigo Sistema Colonial – mecanismo do Antigo Regime pelo qual o capitalismo comercial promove no Novo Mundo a chamada acumulação primitiva, alavanca da primeira Revolução Industrial. Nessa primeira parte do livro, variações desse argumento são expostas na maioria dos textos com obsessão quase hipnótica. Três desses ensaios merecem destaque, pois apresentam o resultado mais acabado do raciocínio do autor, “O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial” (1968), “Passagens para o Novo Mundo” (1984) e “Condições de privacidade na Colônia” (1997). São os esquemas explicativos mais sintéticos e poderosos sobre os três primeiros séculos de nossa história até o processo de Independência, que no segundo texto é apreendido em toda a sua complexidade2

O que nos dizem esses esquemas? O Brasil surgiu de uma ex-colônia, preservando estruturas que um processo radical de independência deveria em tese abolir: a) economia periférica e monocultora de produtos primários; b) forma monárquica de governo; e c) escravidão como única instituição de fato nacional. O resultado foi uma nação partida, com pouco dinamismo interno, tanto econômico quanto político. Os pequenos avanços nesse sentido foram concedidos muito a contragosto por uma elite de feições oligárquicas, que não realizou uma revolução burguesa no sentido clássico e nunca se comprometeu com a reprodução social interna da força de trabalho – a qual até a década de 1930 era realizada fora do país, garantida pelo tráfico negreiro e depois pela política de imigração3. Assim, a chamada herança colonial é o principal obstáculo para a construção de um país no sentido moderno da palavra. Desde o já citado “Colonização e desenvolvimento” (1957), o autor situa explicitamente sua obra na perspectiva da superação dessa barreira, que na época era colocada pelo papa da chamada sociologia do desenvolvimento, o norte-americano Walt Rostow, em termos confusos e simplistas. Veja-se nesse sentido a crítica feita por Novais em “Sistema colonial, industrialização e etapas do desenvolvimento” (1973). Note-se também que as tentativas de superação do atraso ao longo da história de Portugal – conhecida a fundo pelo autor – são objeto de reflexões que igualmente confluem para essa perspectiva. Tudo isso não obstante, é preciso dizer que o andamento da História contemporânea ressaltou uma relativa dissociação entre o esquema totalizante do autor e a tarefa de construção do país, para a qual pretende contribuir. Dito de outra forma, o âmbito da história do capitalismo comporta a criação, mas também a incompletude e a destruição da forma Estado-Nação4.

A segunda parte do livro, Historiografia, trata principalmente da pré-história desse ponto de chegada, ou seja, da formação do país tal como vista pelos chamados intérpretes do Brasil. As obras clássicas de Capistrano de Abreu, Paulo Prado e Sérgio Buarque de Holanda são analisadas sumária mas não superficialmente pelo olhar penetrante do autor, que vai direto às estruturas dos textos. Com perda talvez do colorido ensaístico que nelas não é apenas enfeite, mas atesta uma inserção dos autores no corpo-a-corpo da vida política e cultural brasileira, estranha às especializações universitárias de hoje. Assim, creio que a simples menção à origem social dos autores analisados não é suficiente para avaliar o significado das obras, sendo também evidente que não se pode entender Retrato do Brasil ou Raízes do Brasil apenas como obras de historiografia, fora do âmbito do modernismo de 1922. Mas o ponto alto da segunda parte do livro está a meu ver na resenha de Formação Econômica do Brasil (1959) de Celso Furtado, avaliado com distância crítica no calor da hora, e na análise da obra de Caio Prado Jr., base a partir da qual o autor construiu seu ponto de vista, alargando-a. São autores que buscam situar o país de passado colonial em quadros mais amplos, mas que, segundo Novais, pagam “até certo ponto seu tributo à tradição da historiografia brasileira, sempre menos voltada para as vinculações da história do Brasil com a história geral da civilização ocidental” (p. 40). O passo dado pelo autor consistiu em levar quase até as últimas conseqüências o pendor totalizante de Furtado e Caio Prado, operação intelectual ousada que pressupõe a inovação não mais pela atualização pura e simples a partir de novos modelos historiográficos dos países centrais, mas a acumulação crítica interna a partir de problemas identificados e trabalhados localmente. Em Formação da Literatura Brasileira (1959), Antonio Candido já notara quão meticulosamente um escritor com a força de Machado de Assis nutriu-se do caldo ralo da obra dos predecessores. Guardadas as diferenças e proporções, algo parecido pode ser pensado a respeito da obra de Fernando Novais.

O que nos leva finalmente à terceira parte do livro, Entrevista, onde o autor repassa sua formação e mostra – grande leitor onívoro que é – uma independência e uma desenvoltura crítica que raramente se viram entre historiadores brasileiros, atestado de maturidade de nossa historiografia, que passa a filtrar de modo não-provinciano as influências vindas de historiografias dos países centrais. É o que fica bastante claro nas opiniões do autor sobre as duas escolas mais influentes do século 20, a francesa dos Annales e a Social History inglesa. Assim também em relação à historiografia portuguesa, com a qual o autor discutiu desde sempre, e no âmbito do marxismo brasileiro, ao debater com Jacob Gorender e Ciro Flamarion Cardoso e, mais recentemente, com os historiadores fluminenses adeptos da tese do “capital residente”. Nesse sentido, Fernando Novais lembra a mesma independência crítica em polêmicas semelhantes de seus colegas José Arthur Giannotti (“Contra Althusser”, de 1967) e Fernando Henrique Cardoso (crítica a W. Rostow e a N. Poulantzas, na segunda metade da década de 1960 e começo dos 1970), com teorias prestigiosas do momento. Dito isso, é preciso notar com o Antonio Candido de Formação da Literatura Brasileira que em países periféricos campos culturais nacionais podem se formar e amadurecer sem que o país real se forme por sua vez. Ou seja, a obra de Machado de Assis, nosso primeiro escritor de validade universal, é contemporânea das relações escravistas do Brasil oitocentista.

Aproximações tem sido justamente saudado como uma coletânea de um grande historiador. Lembrando que Fernando Novais hoje é muito mais citado que imitado, procurei ver o livro – para além de uma reunião de textos dispersos ao longo dos anos – como uma unidade problemática à luz do tempo presente, a indagar o leitor desperto. Não é certamente a mais simpática, mas talvez seja essa a forma mais dialética de homenagear um autor vivo.
Milton Ohata é doutor em História pela FFLCH-USP e editor da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, da USP