As Asas Invisíveis do Padre Renzo é um documento admirável. E um livro obrigatório de cabeceira, especialmente para os mais jovens, para que jamais caiam no esquecimento a ditadura, a tortura e sua conseqüência mais danosa, a tentativa de garroteamento do sonho de justiça social e de liberdade de algumas gerações de brasileiros.
O trabalho de Emiliano José revela uma pesquisa de fôlego, narrado de forma objetiva e direta, marca registrada de um bom texto jornalístico. A história do padre Renzo no Brasil é, em realidade, um bem-cuidado mosaico daqueles anos cinza, dos porões sangrentos, da crueldade e brutalidade sem limites dos torturadores, da dor e agonia de milhares de famílias às quais se arrancaram filhos, irmãos, parentes, sem lhes passar recibo, de uma imprensa censurada ou cúmplice, do “milagre” brasileiro, da corrupção, impune e indecente. Juntem-se todos esses ingredientes e se terá a história recente do país, nos trinta anos de ditadura.
O mais fascinante, entretanto, é descobrir que, naquele ambiente de medos, violência e muito sofrimento, brilhou a doce firmeza de um homem especial. Santo, anjo, amigo, protetor, toda a adjetivação dos presos políticos brasileiros cabe em Renzo como uma luva.
Sua vida religiosa é o maior exemplo de desprendimento, amor ao próximo, dignidade e grandeza humana. Desde sua atuação na porta de fábricas, ainda na Itália, quando enfrentou a resistência e a desconfiança naturais de um operariado acentuadamente comunista a um padre que aparecia para cumprimentar a todos, sorrir, abraçá-los.
A decisão de tornar-se missionário e ir trabalhar na África foi tomada ao perceber que havia gente mais necessitada que os operários de Florença, dos quais ganhara a confiança e, de certa forma, uma posição de liderança no encaminhamento das reivindicações.
Terminou no Brasil por imposição de um cardeal, e aqui chegando logo constatou que havia muito trabalho a fazer em comunidades cujo grau de miséria não conhecera na Itália. O quadro que encontrou rapidamente o transformou, e o autor do livro mostra isso com riqueza de detalhes. Estava ali feita a opção preferencial pelos pobres, muito antes de a Igreja latino-americana tomar essa decisão em Medellín.
A mudança em Renzo deu-se sobretudo em reação à fé e mentalidade fatalista encontrada no interior da Bahia e na periferia de Salvador, segundo a qual tudo estava determinado por Deus, especialmente a dor e a carência de tudo. Ali o padre compreendeu que, em seu trabalho, a Igreja não seria a guia do povo, como ele pensava até aquele momento, mas seguiria junto com ele – era o povo que precisava escrever o próprio destino.
Primeiro em Salvador, depois no Rio, em São Paulo, no Recife ou em Fortaleza, Renzo esteve presente nas masmorras políticas. Ajudava, abraçava e consolava os presos e suas famílias. Está em seu diário a anotação do dia mais feliz de sua vida, quando passou mais de doze horas nos presídios Barro Branco e Carandiru: “Sinto-me feliz de viver, de ser padre e de estar no Brasil”.
Conheci o padre Renzo na paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, em seu trabalho missionário entre as comunidades carentes dos bairros de Fazenda Grande, Boa Vista de São Caetano, Capelinha, Orto Calafate, Alto do Peru, Sussunga. Cativante pelo jeito italiano de ser, Renzo fortaleceu em mim os valores cristãos. Para ele não importavam a cor, o credo, a idade, a condição social – sempre nos recebia como irmãos. Alegre como um menino ao pedalar sua bicicleta pelas ruas de Florença, esta é uma lembrança que sempre me emociona quando penso neste grande amigo. Renzo é um Anjo de Asas Invisíveis. Um ser humano missionário que, acima de tudo, serve a Deus amando a seu próximo.
Ainda não foi contado tudo, e nem sei se um dia o será, do período 1964-1985, mas livros como este acrescentam mais fermento à consciência brasileira. A passagem de Renzo pela Bahia é a própria história política e religiosa do país. O que o autor colheu das memórias do religioso e registra nesta obra por momentos nos perturba, emociona, nos faz engolir em seco as próprias fraquezas, nos humilha ante a humilhação daqueles jovens, mas também nos conforta e engrandece com o exemplo e a determinação de pessoas em que a dor física do pau-de-arara, do choque elétrico e das botinadas não conseguiu destruir o sonho de um mundo melhor.
Em nós fica a certeza de que a existência e a presença solidária do padre Renzo naqueles momentos deram a força, o carinho e a esperança necessários para que muitos dos lutadores sobreviventes dos porões da ditadura continuassem a semear o sonho da liberdade, igualdade e justiça social. Emiliano José, um desses lutadores sobreviventes, nos presenteia, sem dúvida, com essa força e essa resistência marcantes na trajetória de padre Renzo e na própria experiência vivida pelo autor.
Nelson Pellegrino é deputado federal e líder do PT na Câmara