Estante

A despeito do silêncio obsequioso com que a grande mídia e a crítica especializada receberam a recente trilogia As Esquerdas no Brasil - composta por A Formação das Tradições (1889-1945), Nacionalismo e Reformismo Radical (1945-1964) e Revolução e Democracia (1964-...) -, organizada por Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis Filho, é incontestável que tal iniciativa colma uma lacuna considerável de nossa historiografia. Principalmente quando verificamos o desconhecimento de parcela ponderável da esquerda brasileira a respeito de suas origens, fontes doutrinárias inspiradoras e experiências variadas que moldaram os inúmeros partidos e movimentos socialistas em nosso país até os presentes dias. Desconhecimento histórico que fica ainda mais patente quando se trata da apreensão da realidade brasileira, por vezes menosprezada ou posta em segundo plano por determinadas formulações táticas e estratégicas da esquerda brasileira,nem sempre suficientemente condizentes com a "análise concreta da situação concreta", como predicava Lenin em sua crítica sobre a formação do capitalismo russo. O que termina por redundar em debates e controvérsias às vezes improdutivos, em que a polaridade excludente entre os que advogam a ótica lógico-abstrata de fundo intelectualista e semanticamente revolucionarista reveza-se com uma postura metodológica, marcada pelo pragmatismo cego, acrítico e legitimados do meramente instituído. Daí as dificuldades de transpor para o plano nacional-popular os valores e concepções que tornam possível uma ação política transformadora, dialógica, fundamentalmente crítica da esquerda perante o capitalismo e suas contradições, que seja capaz de articular dialeticamente as formas conceituais da teoria socialista com as múltiplas determinações oriundas da realidade concreta. Afinal, só seremos contemporâneos com nossa própria época se formos capazes de nos perceber como síntese das lutas, demandas e sensibilidades de largos setores populares que conformaram a trajetória pluralista da esquerda no Brasil, com todas as virtudes e defeitos, potencialidades e limites, carecimentos teóricos e expansões utópicas, universalismos conceituais e singularidades históricas que formam o mosaico heterogêneo que é a esquerda brasileira.

Nesse sentido, é digna de elogios a iniciativa da articulação de um projeto de fôlego como esse deflagrado pela publicação de As Esquerdas no Brasil, que envolve 68 autores, responsáveis pela redação de 66 capítulos sobre diferentes aspectos e problemáticas que buscam reconstituir as trajetórias, as estratégias e as ações políticas esquerdistas, cumprindo assim um papel inexcedível na retomada do sentido histórico da presença da esquerda na sociedade brasileira.

O primeiro volume, A Formação das Tradições (1889-1945), busca apreender um lapso temporal que se confunde com a constituição do Brasil republicano moderno, permeado por profundos paradoxos e contradições entre a proclamação retórica dos valores liberais e a manutenção de formas obsoletas de arregimentação e subordinação da força de trabalho. Estas foram marcadas pelo apelo recorrente a mecanismos coercitivos de "normalização social", em evidente descompasso com o padrão jurídico formal —fundado na universalização e generalização dos direitos fundamentais para todos indistintamente — proclamado retoricamente pelas classes dominantes da época. Pois, como bem enfatizou Florestan Fernandes em A Revolução Burguesa no Brasil, faz parte da gênese estrutural de nossas instituições e de seu incipiente processo de modernização seu divórcio dos valores da democracia e do reconhecimento da soberania popular.

Caráter autocrático da sociedade e do Estado brasileiros, que delimita o pano de fundo das problemáticas sociais, políticas, econômicas e culturais abordadas pelos diversos artigos desse volume, revelando assim a natureza restritiva e débil do enraizamento de valores liberais e democráticos junto à burguesia nativa e a conseqüente intolerância por ela manifestada em relação às demandas e reivindicações "dos de baixo" em nosso país. Padrão excludente das maiorias trabalhadoras e de criminalização de seu processo de auto-organização, em que sobressai o apelo recorrente a repressão contra os sindicatos e movimentos sociais, bem como a golpes militares, à constrição dos direitos civis, trabalhistas e sociais para os mais pobres e à intolerância frente aos processos de construção cultural identitária do povo. Elementos anticivilizatórios, que definem as "regras" "peculiares" de nossa sociabilidade capitalista periférica, mais precisamente de suas interdições às forças populares no que atine a sua assimilação pelo Estado Liberal e seus processos decisórios. Dimensão autocrática de nossas instituições, que funcionam como pano de fundo histórico a partir do qual se entretecem o enredo e as narrativas dos artigos desse primeiro volume.

A estruturação do volume A Formação das Tradições debruça-se em diversas temáticas, com diferentes e plurais enfoques. Há desde a abordagem pouco tratada pela historiografia, da conformação da experiência mutualista e seus influxos na constituição da classe trabalhadora no Brasil, constante no artigo de Cláudia Maria Ribeiro Viscardi e Ronaldo Pereira de Jesus sob o título "A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil", passando pela influência decisiva do anarquismo na estruturação do sindicalismo e sua continuidade/ruptura com a gênese do Partido Comunista Brasileiro, até a cisão neste operada, que resultou na produção do trotskismo e de outras vertentes do pensamento e da prática socialista em nosso país, tematizada pelos artigos de Edilene Toledo, Alexandre Samis e Yara Aun Khoury.

Mencione-se, ainda, o tratamento dado a questões geralmente marginalizadas pela macroteoria socialista, como a contribuição de diversas lideranças intelectuais, políticas, sociais e culturais para o desenvolvimento de um pensamento crítico sobre a natureza da sociedade brasileira, como se depreende da leitura dos variados artigos. De Leandro Konder sobre o Barão de Itararé e seu humor iconoclasta, nem sempre bem-aceito por uma certa esquerda sisuda, hierática, prenhe de certezas e pouco afeita ao chiste e à informalidade. De Joseli Maria Nunes Mendonça sobre Evaristo de Moraes e sua luta pela afirmação dos direitos trabalhistas, em uma sociedade envilecida pelas sobrevivências de uma mentalidade escravista. De Roberto Mansilla Amaral sobre Astrojildo Pereira e Octávio Brandão e os percalços e impasses postos para afirmação de uma reflexão socialista autônoma premida pela ação retorciva do positivismo tenentista conjuminado com as retortas teóricas stalinistas no interior do PCB. De Margareth Rago sobre Maria Lacerda de Moura e sua ação libertária em favor da emancipação da mulher, quando ainda prevalecia a sanha embrutecida de um machismo que compreendia a mulher como objeto senhorial regulado pelo pater família romano. De Maria Lygia Quartim de Moraes sobre Pagu e sua indômita coragem, abrindo vários fronts de luta, alguns contra preconceitos e intolerâncias aninhados no seio de segmentos da esquerda brasileira. De Francisco Alembert sobre Mário Pedrosa e sua inteligência criativa, avessa a respostas fáceis, e seus apetites intelectuais variados, nas artes, na literatura, na pintura, sempre na busca da afirmação de uma via estética e política dos valores do socialismo. De Mônica Pimenta Velloso sobre Mário Lago e sua cordialidade revolucionária, que reunia em melodia e verso as cadências rítmicas de um compasso esquerdista autenticamente nacional...

Por fim, a elaboração teórica presente em A Formação das Tradições (1889-1945), que tem a felicidade de reunir diferentes sotaques regionais e variados referenciais teóricos, sem pretender afirmar ortodoxias doutrinárias ou verdades axiomáticas, constitui-se em livro obrigatório para todos os militantes socialistas brasileiros que teimam em acreditar que podemos ultrapassar os rincões do capitalismo e de sua barbárie política, econômica e cultural. Construção do futuro socialista que não pode prescindir da reapropriação de nosso passado, de nossas referências e de nossas tradições de esquerda.

Newton de Menezes Albuquerque é membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.