Estante

capa_resenha_td39.jpgHouve um tempo (até recentemente) em que o senso comum identificava a palavra "marxista" com a condição de membro de uma seita homogênea, bem definida, com seus princípios (seus dogmas?), sua metodologia (seu ritual?) e sua tradução política (o comunismo). As profundas diferenças internas que existiam no campo dos (autodesignados) herdeiros de Marx eram ignoradas, ou, na melhor das hipóteses, consideradas divergências miúdas, que só podiam interessar aos especialistas.

Hoje, a situação mudou. Depois do colapso da União Soviética é cada vez mais difícil encontrar alguém que encare o "marxismo" como um bloco doutrinário uniforme e compacto. Mesmo uma observação preliminar, que não se aprofunde, leva o observador a se deparar com verdadeiros abismos entre as concepções de diferentes marxistas. Como desconhecer os contrastes que se manifestam entre Lukács e Althusser, entre Gramsci e Bukharin, entre Ernst Bloch e Karl Kautsky, entre Walter Benjamin e Plekhanov, ou entre Adorno e Lenin?

Agora, se chamamos um autor de "marxista", precisamos esclarecer imediatamente em que consiste seu "marxismo" peculiar. Por isso, não nos basta informar que o ensaísta inglês Terry Eagleton, autor de As ilusões do pós-modernismo, é um marxista convicto e assumido. Cumpre-nos esclarecer que sua obra mostra um estilo próprio, um modo pessoal de servir-se das categorias marxistas, interpretando-as em termos que não coincidem exatamente com a "leitura" de outros seguidores do movimento teórico-político desencadeado a partir de Marx.

Eagleton já é conhecido do público leitor brasileiro. Dois de seus livros lançados aqui - A ideologia da estética (Jorge Zahar) e Ideologia (Boitempo) - tiveram alguma repercussão. Trata-se de um escritor que aproveita uma linguagem leve coloquial, muitas vezes brincalhona, pontilhada de "gracinhas", procurando combinar citações eruditas com um discurso de leitura agradável e tentando articular o vigor argumentativo com certa informalidade.

Em sua polêmica com o pós-modernismo, ele reconhece que as novas tendências têm uma razão de ser e, mesmo que as posições pós-modernas devam ser criticadas, devemos vê-las como expressão necessária de uma nova situação histórica: "O pós-modernismo não é, por certo, apenas uma espécie de equívoco teórico. Ele é, entre outras coisas, a ideologia de uma época histórica específica do Ocidente".

Complexo e contraditório como é, o pós-modernismo não só expressa a realidade social fragmentada do presente, legitimando-a, mas também corporifica, em inúmeros aspectos, uma atitude de insatisfação, de rebeldia implícita em face dela, trazendo algumas observações agudas que nos ajudam a compreendê-la.

O reconhecimento dos méritos de alguns autores pós-modernos, contudo, não atenua a crítica de fundo que Eagleton, como marxista, faz ao pós-modernismo, caracterizando-o como uma maneira de enxergar a realidade que resulta numa aceitação da fragmentariedade, resultando num esvaziamento da história e numa repulsa a qualquer totalização. Como não há mais nenhuma totalidade social, não pode haver nenhum sujeito coletivo totalizante, capaz de encaminhar um projeto de transformação da sociedade como um todo: o que se pode esperar de melhor é a realização de pequenas reformas, modestos reajustes institucionais.

Mesmo as expressões de "esquerda" do pós-modernismo acabam escorregando para uma perspectiva empobrecida pela impotência, pela resignação e pelo conformismo. Eagleton chega a sustentar - "numa primeira aproximação" - ele ressalva - que "muito do pós-modernismo é de oposição em termos políticos, mas cúmplice em termos econômicos". Os autores pós-modernos não conseguem visualizar qualquer inserção histórica que possa criar um futuro muito diferente do presente e por isso resvalam para certo conservadorismo tendencial.

As restrições formuladas pelo ensaísta britânico contêm, certamente, alguns bons momentos, algumas excelentes razões. Em sua sofisticação intelectual, ele está, com certeza, a léguas de distância do que chama de "marxistas de Neandertal". Nota-se, contudo, no seu marxismo, uma truculência quase incontrolável, que o leva muitas vezes a abandonar uma postura dialógica, afastando-se do procedimento adequado a um desenvolvimento civilizado daquilo que os italianos designam como "a batalha das idéias".

Ao invés de seguir o conselho de Gramsci e procurar os pontos fortes de seus interlocutores, Eagleton cede com freqüência excessiva à tentação de procurar os pontos fracos dos adversários para fustigá-los com transbordante sarcasmo. Abusando do recurso às "gracinhas", ele tenta desmerecer aqueles que está criticando por meio de afirmações que não dão conta da riqueza das questões abordadas e que têm o objetivo de apelar, de forma que poderíamos chamar de "populista", para a conivência de leitores que já tomaram partido a seu favor (e contra os outros).

Um exemplo dessa atitude pode ser visto em suas referências à psicanálise. Ele lamenta que numerosos leninistas tenham virado "lacanianos de carteirinha", desviando a atenção de problemas graves para irrelevantes e se deslocando "da produção para a perversão". Diz que boa parte dos escritos psicanalíticos se tornou "a subliteratura do ser pensante", despolitizando os debates e se fixando em temas secundários, relativos a vicissitudes sexuais. E se permite uma piadinha de evidente teor preconceituoso, aludindo a uma abordagem psicanalítica de peça de Shakespeare: "Palestras intituladas 'Restituindo o ânus a Coriolanus' atrairiam hordas de acólitos excitados, pouco versados em burguesia, mas muito em sodomia".

Outro exemplo pode ser encontrado no modo sardônico como Eagleton aborda a revalorização da corporeidade por autores pós-modernos. Há, sem dúvida, muito a se discutir sobre o assunto. Para que a discussão seja esclarecedora, porém, o caminho melhor não é o da desqualificação de uma posição pela outra. No entanto, Eagleton debocha do que chama de "saracoteios carnavalescos" do "discurso do corpo". E força um gracejo que aproxima a ginástica de Jane Fonda e a reflexão de Michel Foucault para descrever um movimento de degradação realizado a partir do abandono de Che Guevara! A frase é: "O socialismo de Guevara cedeu lugar à somatologia de Foucault e Fonda".

Compreende-se que a família dos marxistas, atualmente tão desunida, possa se reunir em torno da defesa da história contra o pós-modernismo, tal como Eagleton a empreendeu. Mas também se pode entender facilmente que boa parte dela se oponha com firmeza à pirotecnia agressiva e um tanto demagógica do belicoso ensaísta britânico.

Se o nosso compromisso é com o conhecimento totalizante, necessário ao revolucionamento da sociedade, não nos basta sermos combativos: precisamos, também, estar atentos ao resgate dos elementos que, no discurso do outro, podem nos enriquecer, ao serem incorporados criticamente à nossa reflexão.

Leandro Konder é professor no Departamento de Educação da PUC-RJ.