Estante

A atuação dos irmãos Abramo na vida de São Paulo marcou a cidade de meados do século passado. Fratria talentosa, compunha-se de intelectuais e artistas, todos brilhantes. Provindos de uma família culta e com formação política ainda na Itália, falavam italiano em casa e eram todos de esquerda: como se essa fosse sua natureza, mesmo que em diferentes nuances.

Já no Brasil, o primeiro a nascer foi Lívio (1903-1993), artista plástico que se tornaria um gravador de relevância, identificado com o expressionismo e seus temas sociais. Recebeu o prêmio de gravura na 2ª. Bienal Internacional de São Paulo. Foi diretor do Centro de Estudos Brasileiros em Assunção, no Paraguai, onde residiria em definitivo.

Depois veio Athos (1905-1968), de quem falaremos adiante.

O terceiro foi Fúlvio (1909-1993). Jornalista, participou da coalizão de antifascistas que enfrentou os integralistas na famosa Batalha da Praça da Sé, em 1934. Em seguida, exilou-se por muitos anos na Bolívia, onde trabalhou em botânica e agronomia.

Lélia (1919-2014) foi a quarta. Atriz de primeira grandeza no teatro, no cinema e na TV, detentora de inúmeros prêmios, imortalizou-se com seu papel em Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri. Aguerrida quando na presidência do Sindicato dos Artistas, não recuou perante a ditadura. Lutou pelas Diretas Já e pela Anistia, tornando-se depois fundadora e afiliada do PT. É autora de memórias: Vida e Arte.

O caçula foi Cláudio (1923-1987), respeitado jornalista profissional, responsável pela modernização dos dois maiores jornais do país, O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, enquanto chefe de redação sucessivamente de ambos. Também escreveu memórias: A Regra do Jogo.

E mais Beatriz e Mário, cedo falecidos.

Quanto a Athos, sua paixão, como a da irmã, era o teatro, e foi sob sua direção que ela estreou. Ele criou e dirigiu uma pequena companhia, I Guitti (“Os saltimbancos”), que se expressava em italiano e contava com cenários de Lívio.

Exerceu o jornalismo como crítico de teatro e como cronista. A produção ora apresentada neste volume foi carinhosamente recortada e preservada por sua filha Alcione, irmã de Perseu. Concorreu para o salvamento Lélia, que mantinha sua própria hemeroteca. E um caderno de ilustrações traz imagens elucidativas.

O projeto dos organizadores Alcione Abramo e Jefferson Del Rios concretiza-se em preciosos estudos que acompanham o material reunido, esclarecendo as circunstâncias e fornecendo o quadro histórico para melhor entendermos o percurso de Athos.

A contribuição de Alcione engloba um sensível testemunho sobre seu pai, suas origens e interesses, reconstruindo uma atmosfera familiar.

Por sua vez, a contribuição de Jefferson Del Rios, conhecido pesquisador da área, com vários e importantes livros publicados, retrata o papel de Athos como profissional inserido na cidade de sua época, exemplificando mediante análises das peças por ele criticadas. Em seu cuidado documental, reergue para o leitor até os edifícios dos teatros então existentes.

Ademais, reconstitui a evolução da dramaturgia nacional, a partir de uma época em que predominavam as trupes pertencentes a um ator ou atriz, servindo de caixa de ressonância a estrelas. Destacavam-se com suas companhias Dulcina e Odilon, Procópio Ferreira (aliás, louvado não só por Athos como por Decio de Almeida Prado), Henriette Morineau, Eva Todor, Bibi Ferreira...

Só uma total renovação, decorrente da estreia de uma geração ímpar nos anos 1960, liquidaria com essa concepção, que engessava a arte – sem negar o papel fundamental que desempenhou na consolidação da cena em nosso país. Assim abria-se caminho para experiências de vanguarda como o Teatro Brasileiro de Comédia, o Arena e o Oficina. Foi dessa fase de esplendor que Athos participou.

Outras experiências, que corriam por fora do teatro hegemônico “de ator-empresário”, são contempladas nesses estudos introdutórios. Entre elas, por exemplo, atividades mais popularescas, tanto as circenses quanto as do teatro operário ou sindical, riquíssimo na São Paulo que se industrializava. E, bem lembrado, o teatro amador, que subsistia de norte a sul do país, de forte apelo principalmente para os jovens. Ressalta nele a liderança de Paschoal Carlos Magno e seu Teatro do Estudante.

O advento da TV acabou por disputar a freguesia do teatro, monopolizando tanto a audiência quanto os profissionais, e por fim este veículo de comunicação que se inaugurava sairia vencedor. Encerraram-se assim os tempos em que a crítica dominava as páginas dos jornais e os espetáculos mereciam ampla cobertura. Tempos extraordinários a que pertenceu Athos.

Neste volume estão resgatados documentos de uma época em que o teatro e sua crítica ocupavam lugar central em nossa metrópole. Que o valor da arte e da cultura não se esgota no entretenimento é o que aprendíamos lendo diariamente a produção de intelectuais na ativa como Decio de Almeida Prado, Anatol Rosenfeld, Sábato Magaldi nos periódicos paulistas e Ian Michalsky nos cariocas. Agora, Athos Abramo pode, com toda justiça, ocupar seu lugar nessa ilustre plêiade.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da Universidade de São Paulo. Autora, entre outros livros, de Lendo e Relendo (Sesc\Ouro sobre Azul)