Estante

543_livro_auto_biografia_do_general_franco.jpgOficialmente, Francisco Franco Bahamonde morreu na madrugada de 19 para 20 de novembro de 1975. Com a voz embragada e os olhos lacrimejantes, o chefe do governo Carlos Arias Navarro anunciou na televisão a morte do generalíssimo que, a partir de 1939, depois de uma cruenta guerra civil de três anos, governara a Espanha com mão-de-ferro.

É provável que Arias Navarro não chorasse apenas a perda do "caudillo de España por la gracia de Dios" - designação que circundava a efígie de Franco na peseta, a moeda espanhola - mas estivesse também lamentando sua própria morte política, que o desaparecimento do ditador pressagiava.

Presságio que se revelou verdadeiro. Arias foi mandado para casa pouco tempo depois pelo príncipe Juan Carlos, que, na condição de rei da Espanha, assumiu a chefia do Estado. A partir daí desencadeava-se um dos mais celebrados processos de transição para a democracia das últimas décadas.

Em pouco tempo a Espanha eliminaria as instituições implantadas pelo franquismo, faria a experiência de um governo de centro, para pouco depois eleger um primeiro-ministro socialista, Felipe González, que governou até 1996.

Mas em 1992, e aí entramos na ficção, Marcial Pombo, um escritor de segunda linha, recebe a proposta de editar as memórias que Franco, em seus últimos anos de vida, ditara a colaboradores. Sem dinheiro, e sobretudo sem talento para exigir mais, Pombo não tem como recusar e inicia seu trabalho de dar forma, da maneira mais fiel possível, às memórias do Caudilho.

Mas Marcial Pombo é filho de um operário comunista. Seu pai sofreu as agruras da guerra civil. Pagou com anos de prisão e trabalhos forçados o ter estado ao lado da República. Ainda estudante, quando o regime franquista exibia todo o seu viço, o próprio Marcial ingressou no PC espanhol, experiência que lhe valeu dois anos de cárcere, um matrimônio desfeito e uma carreira intelectual frustrada.

Diante das memórias de Franco, Marcial Pombo não pode comportar-se apenas como um simples ghost writer. Ao reescrever as recordações do Caudilho, ele se defronta com a história da Espanha e com sua própria trajetória pessoal.

Daí vem-lhe a tentação - e este é o grande achado de Manuel Vázquez Montalbán - de ir agregando comentários às recordações de Franco. São anotações que relativizam ou contradizem abertamente a memória do ditador, baseadas em uma multiplicidade de fontes documentais, mas também nas recordações pessoais do redator.

Estes ruídos - é como o dono da editora se refere aos comentários -  que pertubam o texto de Franco têm um efeito extraordinário na medida em que confrontam a todo o momento a memória do vencedor com a dos vencidos, que aparece nos múltiplos depoimentos dos derrotados, mas sobretudo nas recordações e opiniões de Pombo.

A experiência da derrota não é mostrada apenas nas suas implicações macropolíticas. A tragédia do fracasso da República não se cifra apenas nas centenas de milhares de mortos - em combate ou diante dos pelotões de fuzilamento -, nas torturas ou cárceres, na fome e no desemprego. A derrota aparece em toda sua dimensão quando à repressão e miséria que se abateram sobre o povo espanhol se somam o obscurantismo cultural, o fundamentalismo religioso, o fanatismo ideológico aliados à mediocridade, arrivismo e corrupção dos vencedores.

Manuel Vázquez de Montalbán realizou, tanto para produzir o suposto texto das memórias de Franco, como para criar os comentários de Marcial Pombo, um considerável trabalho de pesquisa histórica, capaz de recriar não só a complexidade política e ideológica do período, como de restituir a atmosfera da Espanha antes, durante e após a Guerra Civil. A tudo isso se soma a reconstituição do perfil psicológico do ditador, outro ponto forte do livro.

A tradução cuidadosa de Ricardo de Azevedo, sobretudo as esclarecedoras notas que colocou sempre que o texto exigia, conduz o leitor com mais facilidade através de um período cheio de alusões a acontecimentos pouco ou nada conhecidos, o que supṍe uma familiaridade com contextos históricos ou referências culturais e ideológicas hoje recobertos pela poeira do tempo.

Para não estragar o final, melhor deixar o leitor descobrir o destino que teve o manuscrito da Autobiografia de Franco preparado por Marcial Pombo.

Ao terminar seu trabalho, já passados 17 anos da morte do generalíssimo, Pombo pôde não só fazer uma dolorosa constatação sobre o passado e o presente da Espanha, como, a partir dela, realizar uma aguda e dilacerante reflexão sobre a história.

Ele se recusa a tratar Franco e o franquismo com a objetividade que o editor lhe exige, pois considera impossível separar o ditador e sua obra das experiências da crueldade, da desfaçatez e da mediocridade.

Se, hoje, para as novas gerações as guerrilhas latino-americanas e a guerra do Vietnã são acontecimentos envolvidos na névoa do passado, o que dizer da Guerra Civil espanhola e de suas dramáticas conseqüências?

É certo que o comovente filme de Ken Loach, Terra e LIberdade, recentemente exibido, trouxe à tona - e de maneira dramática - os acontecimentos de fins dos anos 30 na Espanha. Nos 60, quando o franquismo começava a dar sinais de esgotamento, o escritor espanhol-francês Jorge Semprún, produzia para Alain Resnais o roteiro de um filme no qual um militante clandestino do Partido Comunista, interpretado por Yves Montand, se via confrontado com as mudanças pelas quais passava a Espanha e com as implicações que elas traziam para a luta política. O filme sintomaticamente se chamava A Guerra Acabou.

Para preservar a memória do conflito, de seus antecendentes e conseqüências, Vázquez Montalbán construiu nas mais de seiscentas páginas de sua Autobiografia do general Franco um erudito e comovente inventário do que poder-se-ia chamar de sobras dessa guerra. A guerra civil e o que nela esteve em jogo sobrevivem em seu texto como evocação do que foi e do que poderia ter sido.

Marco Aurélio Garcia é professor do Departamento de História da Unicamp e  Secretário de Relações Internacionais do PT.