Estante

capa do livroUm desafio para todo analista político é manter o assim chamado "distanciamento" de seu "objeto de estudo", ainda mais quando isso ocorre em um momento que antecede uma disputa eleitoral, como é o caso agora. Contudo, a boa tradição das diversas ciências sociais mostra que "objetividade" não pode ser confundida com absenteísmo ou falsa neutralidade, antes pressupõe análise rigorosa e tomada de posição, como bem sabem os leitores do saudoso Florestan Fernandes. O livro organizado por Emir Sader e Marco Aurélio Garcia, dois conhecidos acadêmicos­ o último atualmente assessor da Presidência da República­, procura contribuir para a necessária reflexão que o período exigirá das diversas forças políticas e dos cidadãos do país que escolherão os próximos mandatários do Executivo e os representantes legislativos.

Seria fácil desqualificar o livro pelo fato de atuais dirigentes do partido no poder apresentarem sua versão do último período, que se encerrará com o atual mandato do governo Lula. Mas o próprio Marco Aurélio Garcia, no capítulo que trata da política externa do governo Lula, lembra que os pretensos "técnicos" (do antigo governo e mesmo de alguns escribas da imprensa nativa) são também homens de partidos ou próximos a eles, logo também são parte interessada. É dessa perspectiva que devemos ler o conjunto da obra, editada pela Fundação Perseu Abramo e pela Editora Boitempo. O livro é um conjunto de artigos escritos por intelectuais ligados diretamente ao governo Lula (em cargos no governo federal) e por outros estritamente da área acadêmica, que procuram demonstrar o grau e a qualidade das mudanças ocorridas no país na última década. Emir Sader, em "Brasil: de Getúlio a Lula", indica como os últimos oitenta anos foram marcados por uma luta entre forças progressistas voltadas à inclusão da população à riqueza produzida pelo país e pelas forças conservadoras interessadas em manter tais riquezas circunscritas a uma parcela pequena da sociedade. Essa será, aliás, a tônica dos demais textos: como fazer do país uma sociedade voltada às necessidades de todos e não apenas de alguns, como tem sido desde 1500? Os textos de Jorge Mattoso ("O Brasil herdado") e Nelson Barbosa e José Antonio Pereira de Souza ("A inflexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda") procuram apontar a situação macroeconômica do país ao final dos anos 1990, a necessidade de construir um cenário de confiança interno e externo e o compromisso com os contratos estabelecidos ­ expressos na emblemática Carta aos Brasileiros ­ e a reorientação da ação estatal para a indução de uma nova forma de crescimento, qualificada na vulgata economicista de desenvolvimentismo. Os mecanismos propostos para aumentar o poder de compra das classes baixa e média (aumento real do salário mínimo, ampliação do mercado de trabalho formal, programas de transferência de renda, ampliação do crédito para a chamada "linha branca", habitação e automóveis) teriam sido fundamentais não só para o projeto de longa duração de inclusão social como também para enfrentar as restrições advindas da crise financeira de 2008, cujo impacto no Brasil foi menor e durou bem menos que em outras regiões do globo. Isso indicaria o tamanho da demanda reprimida de bens primários e secundários, e o quanto ainda se pode avançar nessa área.

Marcio Pochmann e Guilherme Dias ("A sociedade pela qual se luta") e Luiz Dulci ("Participação e mudança no governo Lula") procuram refletir sobre a urgência de radicalizar o projeto democrático no Brasil, que passa pela forma de distribuição da riqueza em um país onde a estrutura tributária continua sendo regressiva (em que os pobres pagam mais impostos que os ricos), assim como pelo aperfeiçoamento da democracia participativa, condição sine qua non para o fortalecimento geral do processo democrático. Nesses quesitos, o Brasil ainda precisa avançar muito e encontrar respostas para dilemas ainda não superados (as experiências de Orçamento Participativo e das Conferências e Conselhos de Políticas Públicas são exemplos de sucesso e de desafios), mas o importante seria a sinalização para a consolidação de um bloco político portador de um projeto que leve essas experiências adiante. Ao final, o artigo de Marco Aurélio Garcia ("O lugar do Brasil no mundo") e a entrevista da ministra Dilma Rousseff a Sader, Garcia e Mattoso ("Um país para 190 milhões de brasileiros") não só indicam os acertos da política Sul-Sul, fundamental para a diversificação comercial que amenizou a crise de 2008 por aqui e para inserir o Brasil no cenário internacional como protagonista de respeito, como também apontam a elaboração nos últimos anos de um contraponto político-ideológico ao Estado mínimo proposto no agora distante Consenso de Washington. Ao final da leitura, ficamos tentados a levantar diversos pontos que ainda exigem um enfrentamento mais incisivo por parte do Estado e da sociedade civil (a democratização da informação, a questão ambiental, a já citada estrutura tributária, a opção pela expansão do transporte individual, a assimetria de poder entre Estado e sociedade civil nos espaços participativos etc.), mas fi camos também com a sensação de que teremos um debate programático como há muito tempo não se vê no país, entre aqueles que defendem a panaceia mercadista e os que propõem um modelo de desenvolvimento inclusivo. O início da campanha eleitoral nos mostrará o quanto esse debate sensibilizará os 130 milhões de brasileiros que decidirão seu futuro em outubro de 2010.

Agnaldo dos Santos é doutor em Sociologia pela USP e membro do Núcleo de Estudos de O Capital (NEC-PT), de São Paulo.