Estante

Brasil - Mito fundador e sociedade autoritáriaMoro num país tropical
Abençoado por Deus
E bonito por natureza
Mas que beleza!
Em fevereiro tem carnaval
Sou Flamengo e tenho uma nega chamada Teresa
Mas que beleza!!!

Jorge Ben

Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária é o mais recente livro de Marilena Chaui. Publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo, abre a coleção "História do Povo Brasileiro", cujo objetivo é recolher as contribuições historiográficas das últimas duas décadas e torná-las acessíveis ao grande público.

O livro da professora de filosofia da Universidade de São Paulo se encerra com uma afirmação categórica: "Não há o que comemorar". Em meio ao clima das celebrações comemorativas do "Brasil 500", o texto, "escrito com muita cólera", é o resultado da indignação da autora frente aos mecanismos que naturalizam e ocultam a realidade1.

Mas a que realidade e a quais mecanismos a obra se refere? À sociedade brasileira essencialmente autoritária, se contrapõe a imagem de uma comunidade ordeira e pacífica, de uma gente alegre, ingênua e sensual, cujo caráter festivo compensa uma suposta inação para o trabalho.

Quem nunca ouviu que Deus é brasileiro, que o Brasil é o país do futebol, do carnaval e gigante pela própria natureza? Tais imagens fazem parte do que Marilena Chaui chamou de "mito fundador", núcleo em torno do qual gravitam repetidas formulações explicativas que têm por função denegar a violência em nossa sociedade.

Avessa a certas construções intelectuais em voga, segundo as quais tudo é narrativa, sem correspondência necessária com a realidade – que aliás só existiria mesmo como invenção de linguagem –, a autora nos lembra que narração, em seu sentido original, é mito1. No livro, mito é entendido como narrativa referida ao passado, cuja função é legitimar a origem (não a formação), o destino e a configuração de uma realidade social.

O mito é camuflagem, fábula narrativa com poder mobilizador e integrador, prédica profética e fuga do tempo presente que invocam a ressurreição do tempo da pureza e da harmonia originais. O mito se inscreve no sonho de permanência, se pretende imutável, pois sua capacidade criativa é limitada por um conjunto de códigos que deve se repetir, indiferente à temporalidade e ao contexto histórico. Apesar da sucessão narrativa de imagens criadas em torno dele, funciona como conservadora solução imaginária de conflitos e contradições2.

O mito tem o poder da fundação: marca as origens, um passado que não se modifica, se conserva no presente e o justifica. A matriz de nosso mito fundador está na concepção teológico-política do poder. Nela encontram-se a visão do paraíso (a pródiga Natureza nos criou e nos deu identidade), a benção de Deus a nos proteger desde Seu ato de criação, a intervenção de líderes messiânicos que exprimem e incorporam o destino coletivo e, por fim, a sagração do governante que, por direito natural, obedece apenas a Deus e manda pela graça de Deus.

Se em nós operam soberanamente a Natureza, Deus e seus mandatários, não há nada a nos preocupar, pois somos, desde as origens, predestinados à justificação. Assim, a despolitização é a principal característica do mito fundador. Na visão teocrática, a questão do poder como participação política é escamoteada; lei, justiça e saber social estão incorporados no poder e na vontade do governante.

Encontramos registros do mito fundador ao longo de toda nossa história, da Carta de Caminha ao ufanismo futebolístico de Galvão Bueno. O mito é atemporal, mas sua ressonância encontra períodos de erupção e latência. Chaui inventaria e percorre sucessivos momentos de manifestação desse mito. O livro enfatiza a ideologia do verdeamarelismo como imagem celebrante de um país "vocacionado" à ordem agrária (até mesmo o café era nosso "ouro verde").

Trata-se de uma imagem permeável às sucessivas construções da idéia de Nação e seu vasto vocabulário político. As diferentes elaborações nacionalistas comportam, desde o início do século XIX, uma visão unitária da sociedade. As diversidades são eliminadas, os particularismos são absorvidos, a divisão e a luta de classes passam a existir apenas na "ideologia de esquerda", a sociedade é totalidade. Una e indivisa.

Em Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária, o leitor não encontrará um texto com a pretensão de ser uma nova grande síntese de nossa história. O livro é, sem dúvida, abrangente, revela acuidade na reconstituição do passado e ampara-se em historiadores clássicos. Mas dele não se deve esperar uma obra de cunho historiográfico sobre a formação da sociedade brasileira. Trata-se de uma reflexão filosófica no campo do político, com grande abertura para a história.

Marilena Chaui localiza o objeto da filosofia na "interrogação do sentido do ser das coisas", com "poder de abertura da chave temporal", ou seja, com certa liberdade de movimentação no tempo3. Com essa chave, interrogou o sentido do histórico e estrutural autoritarismo da sociedade brasileira.

Há cerca de 20 anos, Chaui interrogava-se sobre o sentido político-filosófico da democracia, entendida como criação, reconhecimento e consolidação de direitos, exposição dos conflitos aos poderes constituídos e instituição capaz de questionar-se a si mesma, abrindo-se para a história. Nesses termos, a democracia é reinvenção contínua de sujeitos políticos capazes de autodeterminação4.

A ênfase na questão democrática não buscava seu sentido pleno na crítica à ditadura militar agonizante. O autoritarismo não é simples questão de Estado, nem a violência está restrita à questão jurídica, mas encontram-se encravados em uma sociedade agressiva em todas as esferas das relações sociais, política e economicamente verticalizada e hierarquizada, fundada em relações patriarcais de mando e obediência, submetida ao encolhimento dos direitos sociais e ao predomínio parasitário dos interesses privados sobre o interesse público.

Finda a ditadura, permanece vital o questionamento sobre o sentido de nossa sociedade autoritária. A base teológica do poder, nos alerta Marilena Chaui, não é uma recordação do passado colonial ou do período de formação do "Brasil como nação", mas se vê reatualizada pelo neoliberalismo.

Em detrimento de políticas sociais, o Estado é cada vez mais sensível ao reforço dos privilégios de uma minoria, a confusão entre público e privado é agravada, o poder de barganha dos movimentos sociais é limitado pelo desemprego, a política é coisa de experts, o poder se exerce em relações de intimidade, as decisões pertencem à esfera burocrática, os "superiores" mandam e os "inferiores" obedecem.

Porto Seguro, 22 de abril de 2000. A festa cívica, a fusão dos corações, o fervor coletivo, o sonho de unanimidade foram por água abaixo. Convivas indesejáveis não souberam se comportar, nem entender que o Brasil não é Nau frágil.

Fernando Teixeira da Silva é doutor em História Social na Unicamp, professor de História da Universidade Metodista de Piracicaba e autor de A carga e a culpa. Os operários das Docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade, 1937-68 (Hucitec/Santos-Prefeitura) 1995.