Nos auditórios por onde passo, e tenho passado por muitos nesses últimos dias, falo no livro. Exibo-o. Considero indispensável a quem pretenda visitar o horror, o terror, a crueldade, a frieza de torturadores, e a natureza gélida de um traidor, indispensável ler “Cachorros”.
Daquelas leituras, ao menos comigo foi assim, capaz de tomá-lo, envolvê-lo da primeira à última página.
Quem um dia vier tê-lo à mão, o meu exemplar, mais tarde, vai provavelmente se indignar: todo rabiscado, sublinhado, péssima mania de quem tem com os livros uma relação visceral, incapaz de resistir a um comentário, observação, registro a ser guardado, e só retido se marcado a caneta.
Hábito adquirido ao longo da existência, já longa.
Advirto: é preciso estar preparado para a leitura.
Incomoda, incomoda muito, e incomodar é característica da boa literatura e do bom jornalismo.
A trajetória desse exemplar tem história.
Pedi a Maria Cláudia Badan Ribeiro, autora do também fundamental “Mulheres na luta armada”, fosse ao lançamento. Foi. E aconteceu, como ela registra no bilhete dela a acompanhar o livro, no dia mais triste da minha vida, dia 1º de agosto deste 2024, quando minha amada companheira, Carla França, partiu definitivamente, vítima de um câncer.
Lançamento em São Paulo, ela me enviou alguns dias depois do Rio de Janeiro, terra dela por dez anos. “Um pouco da beleza daqui neste seu momento de dor”, ela diz no carinhoso bilhete. O livro chegou autografado pelo autor.
Mergulhei.
O livro tem um significado histórico.
Dou peso à palavra histórico.
Volta e meia debato a relação entre jornalistas e historiadores.
É tensa.
Historiadores, muitos, nos olham atravessado.
Não têm uma relação tranquila com jornalistas.
Nessa cobrança, se esquecem da nossa urgência, de nossas tentativas de capturar a história quando ela praticamente está acontecendo, quando as balas estão passando por cima de nossas cabeças ou ao lado dos nossos corpos.
E não nos falta rigor, cuidados.
Nunca os mesmos dos historiadores, e apenas por que diferentes.
E sabemos: os historiadores, inclusive os críticos, bebem na fonte do trabalho jornalístico.
Espero seja relação a caminho da paz
Deixo de lado a polêmica para voltar-me à natureza histórica de “Cachorros”.
É publicação cuidadosa, fruto de pesquisa de uma década, a revelar método, trabalho incansável, busca incessante de fontes, de todos os lados.
Um dos poucos trabalhos sobre o período fundado, também, em fontes militares, algozes do período ditatorial, tornando-o sólido, quase inquestionável.
E digo quase porque não creio haja qualquer esforço de pesquisa infenso à crítica e a questionamentos, e estes sempre são necessários e bem-vindos.
Os historiadores precisarão beber dessa fonte, e o digo sem qualquer intenção de polemizar.
Faço-o apenas por imaginar seja indispensável a quem queira compreender a ditadura, o horror
Anjo da morte
Creio estar à mão do cinema um roteiro quase pronto. O massacre dos comunistas do PCB pelas mãos de um anjo da morte proveniente do útero do próprio partido.
Um anjo da morte com impressionante currículo de militância, inclusive participação da Revolução de 1935, sempre colado a Prestes, integrante do Comitê Central e da Executiva da mais tradicional agremiação comunista de nossa história.
Ele, o principal agente da morte de pelo menos 12 dirigentes do Comitê Central: Severino Theodoro de Mello.
Denominado pela ditadura agente Vinicius.
Obediente, disciplinado agente Vinicius, como estivesse se valendo de todo o aprendizado colhido na longa militância comunista, e provavelmente se valendo de fato.
Um anjo da morte a conseguir passar incólume por décadas, com o próprio partido resistindo, desde o início dos anos 1990, quando aparecem as primeiras notícias da infiltração, a admitir a condição de cachorro de Mello.
O livro subverte qualquer tentativa de abrandar a ditadura, e esse é um dos méritos centrais dele.
E há tais tentativas.
Revela o terror.
Uma ditadura sempre ceva os próprios monstros.
Cria-os e os alimenta.
Ela própria, o monstro: é o caso de dizer.
O monstro principal.
Pode parir monstros menores, a se opor ao pai.
Ao longo do livro, é possível flagrar contradições no interior dela. Como em tudo, contradições.
Mas, ditadura é um todo.
Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo.
Em tais generais-presidentes, tais ditadores, possível localizar diferenças, e momentos singulares da ditadura.
Nunca deixando, no entanto, de ser ditadura.
Quando Ernesto Geisel, o patrono da distensão lenta e gradual, ancorado no bruxo Golbery do Couto e Silva, disse, logo ao assumir, ser necessário “continuar a matar”, desmontava qualquer ilusão sobre a sequência da ditadura.
Que diabo de distensão era aquela?
Distensão, sim, regada a sangue.
Ditadura.
Fardas dos generais das Forças Armadas, inteiramente manchadas pelo sangue das vítimas.
Seria bom tivessem as Forças Armadas capacidade de fazer autocrítica.
Ainda assim, jamais conseguiriam limpar as manchas de sangue das fardas.
Ditadura, por óbvio, sanguinária.
E o livro, no cerne dele, quando então a repressão conquista, se a palavra couber, conquista o cachorro Severino Theodoro de Mello, tem ponto alto a partir de 1974.
Exatamente, portanto, no alvorecer do governo Geisel, a fase do “continuar a matar”.
E continuou.
O governo Geisel é protagonista de alguns massacres, o mais terrível deles, aquele a abater o cerne da direção do PCB, dirigentes do Comitê Central.
Não há linha reta na história.
Nem sob ditaduras.
A iniciada em 1964 teve uma continuidade mais ou menos uniforme entre o início dela e o governo Figueiredo.
Aqui, com Figueiredo, o regime militar já estava cansado, a luta armada já havia sido massacrada, ditadura já havia usado “o martelo pilão para matar a formiga”, como disse o general Adyr Fiúza de Castro.
E quando ao final dos anos 1970, já crescera a movimentação de massas, tanto de camadas médias quando do novo proletariado, no Centro-Sul, de onde surgirá Lula e o PT.
Figueiredo será o canto do cisne do regime militar.
É quando ocorre a anistia.
E quando ao final, ocorre a Campanha das Diretas, gigantesca mobilização, com participação decisiva do PMDB, dos governadores, dos autênticos, das massas populares.
Um momento de celebração democrática.
Derrotada, a Campanha das Diretas dá o empurrão final na ditadura, numa transição cheia de acomodações.
Numa conjuntura onde não havia força suficiente para obrigar, por exemplo, as Forças Armadas a saírem inteiramente de cena e simultaneamente o país conseguir punir os torturadores.
Não estou entre os componentes do Muro das Lamentações.
Não fomos além porque a correlação de forças não permitiu.
Chegar à democracia, em 1985, com todas as limitações, um passo essencial à vida política do País, como essencial havia sido a anistia.
E essa chegada foi decorrente da luta de massas, importante acentuar.
As “transições por cima” não ocorreram apenas naquele momento.
Aconteceram em várias outras ocasiões de nossa história.
A partir daqueles meados da década de 1980, não há como ignorar nem esconder, iniciamos um longo período democrático, de longevidade única em nossa história.
Um período a ser comemorado, celebrado.
O maior dos cachorros
A ditadura, tendo derrotado implacavelmente a luta armada, começava então o processo de esmagamento do PCB, a quem considerava um inimigo temível, perigoso.
E o considerava assim porque defendia a mobilização e conscientização das massas como o caminho para a derrota do regime, caminho a ser verdadeiramente adotado até a superação do regime.
Tratava-se de massacrar o PCB, como havia sido feito com as organizações da esquerda armada.
Melhor, pudesse, se encontrasse um bom cachorro, expressão a designar o militante convertido, disposto a continuar dentro da organização revolucionária, entregando seus pares.
A ditadura chegará ao maior de todos os cachorros.
Ao maior dos espiões.
A um sujeito com enorme potencial de destruição, capaz de levar 12 dirigentes do partido à morte, isso para falar apenas dos principais comunistas porque o volume de prisões, de torturas, foi imenso.
Os 12 dirigentes, esquartejados.
Ou jogados em rios com pedras amarradas ao corpo para não virem à tona.
Ou incinerados numa usina de cana de açúcar.
O horror.
O terror.
Marcelo Godoy conta a chegada ao maior dos cachorros.
Véspera de feriado.
Ano de 1974.
Severino Theodoro de Mello, Mellinho, nos seus vigorosos 57 anos, cabelo bem penteado, caminhava tranquilamente na Vila Formosa, zona leste de São Paulo.
Encontrar jovem namorada.
Parado por dois homens negros, nem se apercebe do risco.
Um deles pede fogo para acender um cigarro.
Abruptamente, imobilizado.
Levado para a “Boate”, uma das casas clandestinas da repressão, de sugestivo nome, em Itapevi.
Nela, quem entrava morria ou virava cachorro.
Nesta casa de horror, só as duas alternativas.
Mello cedeu à tentação de viver.
Virou o mais importante cachorro de todo o período da ditadura.
Ele próprio, dos mais importantes dirigentes do PCB.
Cachorro viajante
Pertencente ao Comitê Central e à Executiva do partido.
Podia levá-lo à destruição.
Quase conseguiu.
Só muito tardiamente, como resultado do trabalho do jornalista Marcelo Godoy, e quase à beira da morte do traidor, o PCB admitirá ter convivido com o cachorro Mellinho por tanto tempo.
Importante registro: tornou-se um cachorro compenetrado da tarefa.
Assumiu de modo militante a nova tarefa.
Frio, metódico, a passar durante todos esses anos informações preciosas à repressão, não só aquelas capazes de levar à morte de dirigentes, como sobre a estrutura do partido, sobre as relações internacionais, as perspectivas políticas, tudo.
Um anjo da morte capaz de valer-se de todo o aprendizado anterior, inclusive os métodos da clandestinidade.
Saía de uma reunião da Executiva, e encontrava-se com seus controladores para informá-los.
Dar-lhes régua e compasso para o trabalho de destruição do PCB sem o partido perceber tal movimentação.
Um anjo da morte invisível.
Capaz de passar anos agindo.
No Brasil e no exterior.
Em Moscou e em Maputo.
No Rio de Janeiro e em Paris.
Sempre jogando com pau de dois bicos, o agente Vinicius, também apelidado Pacato pelos seus bons modos.
Do sabido e consabido, morreu sem culpa.
Tornou-se amigo dos controladores, dos homens da repressão.
Deles, recebia ordens.
Cumpria tais ordens com rigor.
Inclusive a de dar entrevista para Marcelo Godoy.
Dependeu do último controlador, o agente Pirilo, Antônio Pinto, da Aeronáutica, a quem o autor, com razão, dedica muita atenção, pelo papel dele como agente da repressão e como o controlador da etapa final de Mello, cachorro tão essencial.
O autor consegue a um só tempo revelar a trajetória do Cachorro Severino Theodoro de Mello, quase podemos dizer o protagonista do livro, como também expor as vísceras da ditadura, e dizer assim, expor as vísceras é um modo de dizer o quanto existiu de violência, de terror, insisto, na ditadura.
Como passasse o bisturi no corpo putrefato da ditadura, e ao passar, deixasse sair tudo, ou quase tudo de monstruoso presente naquele corpo.
Como fizesse uma autópsia, a revelar o passado criminoso daquele corpo, capaz de produzir tanta crueldade, perversidade, assassinatos, esquartejamentos, corpos incinerados.
Esse passado às vezes dá novamente as caras.
Recentemente, o Brasil soube de nova tentativa de golpe, com intenções de derramamento de sangue.
Parindo monstros
Desumana, nunca me refiro assim à ditadura.
Ela é demasiadamente humana.
O ser humano não é bom, diria o Freud.
E ele se torna ainda mais cruel se estiver a favor de causas contrárias à civilização, à democracia.
Aí, solta todos os instintos violentos, destrutivos.
Tais instintos, personificados, em homens da ditadura.
A lembrar, e o livro lembra, as ordens para matar vinham de cima, como torturar era uma rotina autorizada desde cima, também.
Da cadeia de comando.
Não há possibilidade de atenuar a ditadura, muito menos os generais.
A vir desde o general-presidente.
E a chegar aos demais generais, comandantes de região.
Isso ganha nitidez certamente para que as Forças Armadas não tentem encontrar desculpas – elas foram a patrocinadora e a executora da ditadura, de modo especial o Exército.
Não há modo de escapar dessa afirmação histórica.
E o autor, como bom jornalista, identifica alguns dos principais homens do terror, aqueles a botar a mão na massa, e a gostar de toda aquela violência enquanto massacrava pessoas.
Havia os que se compraziam com aquele trabalho.
Voltando a Freud, tinham gozo nele.
Um ou outro, com destino trágico.
Outros, nem tanto.
Leitor vai ler, e vai saber disso tudo.
Mas, me atrevo a selecionar alguns deles, desses horríveis torturadores e assassinos, presentes no livro, devidamente denunciados, assim tipo matar a cobra e mostrar a cobra morta.
Por isso, talvez, para não errar, Marcelo Godoy passa dez anos pesquisando para então entregar-nos obra tão preciosa.
Doutor Flávio, um dos mais terríveis agentes, torturadores da ditadura.
Freddie Perdigão Pereira será o principal protagonista da conversão de Mellinho à condição do principal cachorro do período ditatorial, na Boate, em Itapevi, ao lado de outro terrível torcionário, o doutor Ney, Ênio Pimentel da Silveira, os dois homens-chave do DOI-CODI, capitães em 1974.
Doutor Ney terá destino trágico: no dia 23 de maio de 1986, foi encontrado morto na casa ocupada por ele no Forte Itaipu, Praia Grande, São Paulo.
Terá sido arrependimento?
Fruto de consciência culpada?
Saber, quem há de?
É morte parecida com a de Sérgio Paranhos Fleury, morte por afogamento, sem muitas explicações, sintomaticamente no 1º de Maio de 1979.
Caiu sozinho da lancha?
Saber, quem há de?
No popular, se diria: aqui se faz, aqui se paga.
Forma de dizer.
Consola um pouco.
Maioria dos torturadores, no entanto, restou ilesa.
Como já disse, não tivemos força para puni-los.
Doutor Ney, capitão Ênio Pimentel da Silveira, e doutor Flávio, Freddie Perdigão Pereira, eram daqueles capazes de tudo na tarefa de obedecer à cadeia de comando, ordens vindas de cima.
Alguns dos dirigentes presos pela dupla foram levados à Casa da Morte, em Petrópolis, lá, esquartejados.
Não se assuste, caro leitor, cara leitora: cortavam-se as falanges dos dedos e se destruía a arcada dentária dos mortos em Petrópolis para dificultar qualquer possibilidade de identificação, como Godoy registra.
Depois, separavam-se as pernas e os braços do tronco e, por fim, as partes eram atiradas em rios da região.
Se o doutor Ney se suicidou por consciência culpada, razões ele as tinha de sobra.
Freddie Perdigão vai morrer somente em 1996.
E foi um dos mais terríveis monstros paridos pela ditadura.
O leitor vai perceber isso lendo o livro e procurando outras fontes, se for o caso.
Vai encontrá-lo ligado ao crime organizado, quando não era mais das Forças Armadas.
Ocupa papel central no livro de Marcelo Godoy.
Se alguma dúvida existisse em relação à família Etchegoyen, a todas as barbaridades cometidas por ela, bom ler o livro.
Outra contribuição de Marcelo Godoy.
Antônio Pinto, outro personagem essencial.
Um típico agente secreto.
Eficiente.
É com ele a abertura do livro.
Oficial da Força Aérea Brasileira, dedicou-se mais à área de inteligência, menos à força bruta, à tortura.
Morreu como viveu: ninguém queria aparecer ao lado dele.
Nem na morte.
Das sessenta pessoas presentes ao velório dele, capela 5 do cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, tarde de 22 de maio de 2018, nenhuma assinou a lista de presença.
Como registra Godoy: o homem que viveu em meio ao sigilo assim também seria enterrado.
Podia ser conhecido também como agente Paulo Roberto Pirilo.
Ou como Azambuja.
Morreu aos 86 anos, e na longa existência de agente secreto, homem da ditadura, confessa uma frustração: ter deixado escapar o jornalista e militante do MR-8, Franklin Martins.
A importância dele está no uso da inteligência, naquilo que poderíamos denominar formulação teórica ou psicológica sobre como lidar com cachorros.
Ensinava ética, é, havia uma ética, ao menos como ele considerava.
Antônio Pinto, ou Pirilo, ou Azambuja costumava dizer: o militar dono de um canil devia, sobretudo, saber cumprir os acordos.
Só assim obtinha a confiança e a lealdade dos cachorros dele.
Não obtivesse tal confiança e lealdade, o trabalho não se mantinha de pé.
Severino Theodoro de Mello passa vários anos como cachorro de Freddie Perdigão e Ênio Pimentel da Silveira, entregando tudo do PCB.
Em 1980, Silveira entrega Mellinho a Pirilo.
E o cachorro, agora com novo dono, dará a Pirilo um farto material, suficiente para a produção de 300 documentos sigilosos em torno do PCB.
O roteiro do filme, pronto, insisto para quem quiser meter mãos à obra.
Criminosos, principalmente os generais, a começar dos presidentes da República.
Sei, já foi dito, mas necessário insistir.
O livro desmonta também, se dúvida houvesse, a pretensão de encontrar na ditadura uma atitude indulgente com o PCB, diferente daquela adotada em relação às organizações da esquerda armada.
Equívoco ou má fé de quem imaginar essa posição por parte dos militares.
Demonstra a decisão de destruir o partido, então o perigo maior, pela linha política de mobilização de massas.
Para isso, valeu-se do cachorro Severino Theodoro de Mello.
O livro, a par de extraordinária contribuição, nos deixa a certeza de que há muito a descobrir sobre a ditadura e todo o terror daqueles 21 anos.
Trabalho de um grande jornalista.