Estante

Boa leitura para conhecer um pouco da resistência à ditadura no BrasilSeria acima de tudo uma injustiça com a própria obra buscar em Cale-se toda “a história do movimento estudantil paulista na década de 70”, conforme propõe a última capa do livro. Ele tampouco chega a dar conta integralmente da história da tendência estudantil “Refazendo”, ao contrário do que sugere o autor nos Agradecimentos.

Entretanto, os eventos que descreve ao longo dos setenta dias transcorridos entre o assassinato do estudante Alexandre Vanucchi Leme e o show de Gilberto Gil na USP em 1973 poderiam ser encarados como o verdadeiro momento de fundação dessa tendência. A memória extremamente viva que os depoentes guardam daquele período, bem como a aura quase mística que envolveu durante tanto tempo as fitas da gravação do show, lembra bastante os cultos laicos que costumam acompanhar todos os acontecimentos fundadores.

Embora a Refazendo só viesse a ser formalmente criada e batizada mais de dois anos depois, perma­necendo numa espécie de incubação semiclandestina, o fato é que sua semente já ali estava plantada. O ano de 1973 marca a completa desarticulação da maioria das organizações políticas clandestinas que ainda atuavam na USP após o AI-5. Se, por um lado, isso deixava praticamente “órfã” aquilo que então se chamava no jargão da esquerda de “vanguarda social” do movimento estudantil remanescente, por outro abria um enorme espaço para a reorganização autônoma desse movimento, agora com uma feição muito mais “espontânea”.

Essa “espontaneidade” e autonomia acabaram sendo decisivas para que o movimento estudantil pudesse readquirir na segunda metade da década de 1970 o caráter maciço perdido desde 1968. A tendência Refazendo, talvez a mais autônoma entre todas as que atuavam na universidade naquele momento, foi a um só tempo produto e produtora desse processo. Produto porque, embora contasse com alguns antigos militantes e simpatizantes de organizações de esquerda em suas fileiras, estruturou-se sobretudo a partir da articulação de lideranças emergentes aglutinadas em torno dos centros acadêmicos. Produtora, porque viria a dirigir as primeiras grandes manifestações de massa pós-68 ocorridas dentro e fora da USP.

O livro de Caio Túlio reflete muito bem essa ambigüidade, ao retratar fielmente os dramas e dilemas enfrentados por seus personagens centrais. Ele deixa claro, entre outras coisas, que estes não executavam nenhum plano pré-traçado por algum Comitê Central distante – como até mesmo os órgãos de segurança pareciam imaginar –, mas procuravam reagir a acontecimentos sobre os quais não tinham o menor controle e, o que era pior, nem muita capacidade de previsão. A própria convocação da missa em memória de Alexandre Vanucchi Leme foi precedida de muita insegurança e hesitação por parte das diretorias dos centros acadêmicos. Afinal, ela poderia perfeitamente ter se transformado no “banho de sangue” a que se refere Jarbas Passarinho em carta dirigida a dom Paulo Evaristo Arns, em vez de na primeira grande vitória do movimento estudantil na década de 1970.

Ao construir sua narrativa a partir da fala dos personagens que protagonizaram diretamente esses episódios, o autor consegue dar tal vida a fatos que já podem ser considerados históricos que chega a parecer que eles estão se desenrolando no presente. Além disso, ele se mostra suficientemente sensível para captar certas “sincronicidades” inimagináveis para um historiador tradicional.

A transcrição pura e simples da gravação do show de Gilberto Gil, por exemplo, isolada de seu contexto, certamente revelaria a um pesquisador pouco atento muito mais diferenças do que semelhanças entre o discurso do artista e o dos estudantes. Entretanto, os monólogos, os diálogos, as reticências, os silêncios, as letras e a seqüência das músicas cantadas por Gil acabaram criando um clima de cumplicidade total entre artista e platéia, a ponto de o show se estender por mais três horas além do previsto.

Para quem deseja saber um pouco mais sobre a história do movimento estudantil e da resistência desarmada à ditadura militar no Brasil, porém, Cale-se é um livro imperdível. Afinal, ainda é bastante reduzido o número de relatos a respeito do que estava acontecendo nos bairros, nas fábricas e nas universidades.

Esperamos que este livro abra caminho para mais narrativas desse tipo, a fim de que possamos conhecer melhor esse outro lado da luta contra a ditadura, menos heróico talvez, mas certamente imprescindível para compreender o longo e tortuoso processo de transição democrática que se iniciou no país já no ano seguinte ao dos acontecimentos que ele descreve.

Paulo Sérgio Muçouçah é sociólogo e doutorando pela FE/USP. Atualmente, ocupa o cargo de diretor do Programa de Gestão Territorial do Ministério do Meio Ambiente