Estante

Capa CamaradasO livro de Willian Waack, Camaradas, é, sem dúvida, uma contribuição para o estudo dos movimentos armados de novembro de 1935. Seu trabalho nos arquivos de Moscou trouxe à tona documentos inéditos, o que sempre entusiasma o pesquisador. Waack descobriu identidades, a figura, até então desconhecida, de Locatelli e conseguiu refazer boa parte da correspondência do ano de 1935 entre a Internacional Comunista (IC) e o PCB. Camaradas suscita debates, o que é positivo, embora muitas das colocações do autor, largamente anunciadas como novidades, ou não o são, ou não são verdadeiras, ou carecem de importância para os acontecimentos de novembro de 1935.

Entre os muitos pontos a discutir está a visão metodológica de Waack, que trata o tema a partir de uma perspectiva inteiramente exógena. Não me refiro à opção válida, desde logo - de analisar novembro de 35 sob a ótica da Internacional Comunista. Trata-se de o autor acreditar ser possível explicar importantes episódios da vida nacional por motivações situadas exclusivamente fora do Brasil. Mesmo privilegiando os fatores externos, não é possível entender os movimentos de 1935 sem considerar a sociedade brasileira da época, a tradição revolucionária tenentista, o PCB e, muito menos, a Aliança Nacional Libertadora. O Brasil não é personagem de Waack, que dispensou também toda uma larga bibliografia sobre a Internacional.

A partir daí, como não podia deixar de ser, os revolucionários brasileiros transformam-se, nas páginas de Camaradas, em fantoches que só se movimentam quando Moscou puxa suas cordinhas. Waack chega a ponto de afirmar que boa parte do fracasso das insurreições de 35 foi devida à falta de comunicação com Moscou (p. 204).

A partir da abordagem teórica do autor, os levantes de novembro de 35 só poderiam ter ocorrido por ordens de Moscou. A dificuldade está em comprovar a tese. Só no capítulo "Decidam vocês mesmos", podemos encontrar inúmeras provas de que a decisão dos levantes foi tomada no Brasil.

Alguns exemplos: em 25 de novembro, ao resolver pela insurreição no Rio (as do Nordeste já haviam ocorrido), Prestes comunicou a decisão a Moscou. A resposta da Internacional, do dia 27, diz: "Decidam vocês mesmos". Além disso, os homens da Internacional mandam dizer que conhecendo pouco a situação brasileira, não podiam "dar conselhos". Vam Min, um dos dirigentes da Internacional Comunista, quando recebeu o aviso da insurreição, "pareceu fulminado por um raio", enquanto que Manuilski procurou garantir-se de futuras responsabilidades. Mas Waack insiste nas "ordens de Moscou".

Ao deixar de lado a história da Internacional Comunista, o autor relegou questões fundamentais para a compreensão do tema. Uma delas, mencionada e descartada, é o fato de, justamente no ano de 35, a Internacional ter adotado a política das amplas frentes populares, repudiando ações golpistas. E o fez não apenas pressionada pelo avanço do nazismo, mas pelos partidos comunistas europeus que rompiam, na prática, com o sectarismo do Komintem. Principalmente, há que se levar em conta que, mesmo no auge de sua política esquerdista, desconhecem-se ordens de Moscou para movimentos armados, mesmo nos países considerados prioritários para a revolução mundial - o que estava longe de ser o caso do Brasil. (As revoluções na Alemanha, no final da Primeira Guerra, e os acontecimentos de Cantão ocorreram num contexto muito especial. No primeiro caso a Internacional Comunista sequer existia; na China, havia prolongada guerra civil e o comportamento de Stalin, tentando a todo custo e por muito evitar a hegemonia dos comunistas na revolução é por demais conhecido).

A indisfarçável falta de simpatia do autor pelos comunistas, em especial por Prestes, levam-no a difundir patranhas que estão longe de fazer jus a seu talento. Waack chega a aceitar como verdadeiros os "planos de uma insurreição comunista no Brasil, elaborados por Moscou", publicados por O Globo, no final de junho de 1935, ensaio do futuro Plano Cohen, que até mesmo o governo, à época, não teve coragem de sustentar. Outra questão: Prestes não pagou para "entrar" na Internacional, que não era uma organização de mercenários. Aliás, não se entrava para a Internacional, pertencia-se a ela a partir do ingresso nos PCs, suas seções nacionais. Bem que Prestes tentou, desde que chegou a Moscou, no final de 1931, entrar para o PC soviético, o que jamais conseguiu. E, já em abril de 1930, comunicara aos tenentes que não devolveria o dinheiro dado por Vargas, destinado à compra de armas para o movimento que, em outubro, o levaria ao poder. O dinheiro ficaria "para a verdadeira revolução" e para ela o entregou a Harry Berger, em 1931, em Montevidéu. Prestes jamais escondeu o fato.

Há muitas outras questões a discutir, como a do famoso "ouro de Moscou", que merece também outro tratamento. De qualquer forma, "ouro" bastante modesto se comparado aos gastos norte-americanos de 1962 a 1964 no Brasil, o que, como escreveu o professor Marco Aurélio Garcia, não nos autoriza a considerar a golpe militar de 1964 ocorrido por ordens do Tio Sam.

O que mais incomoda em Camaradas, entretanto, é a resistência de Waack em aceitar o idealismo dos revolucionários. Enquanto Góis Monteiro é considerado "brilhante", desde as primeiras páginas os comunistas aparecem todos como boas-vidas, oportunistas, cínicos, debochados, subservientes, preocupados principalmente em gastar e pagar as contas. É uma visão cética, amarga e profundamente equivocada.

A grande maioria dos revolucionários acreditava ser possível construir um mundo melhor e lutava por ele, pagando um preço muito alto pela derrocada de seus sonhos. É verdade que o idealismo revolucionário, por mais generoso que seja, não justifica uma ação política errada.

É verdade também que pode ser perigoso - em primeiro lugar para os próprios revolucionários - quando não é acompanhado de cultura histórica, política e humanista. Mas é só através dele que a história se transforma.

Marly de Almeida Gomes Vianna é professora adjunta de História do Departamento de Ciências Sociais da Universidades Federal de São Carlos.