Estante

A face visível da transformação do país

capacartaslula.pngAmélia Cohn é uma pesquisadora conhecida por sua análise fina dos desafios da construção de uma sociedade democrática, e este livro nos permite refletir sobre como cada um de nós pode exercer com maior plenitude a democracia que tanto valorizamos.

O livro tem como ponto de partida as cartas destinadas ao presidente Lula nos primeiros anos da implantação do Programa Bolsa Família. Muitas vezes escritas com esforço, são cartas simples de brasileiros que haviam esgotado sua habilidade para lidar com as autoridades locais na busca por garantir o acesso a direitos. No entanto, a esperança de que seriam ouvidos por uma pessoa que passou, como eles, por situações de agravo os moveu a vencer suas limitações e escrever e, principalmente, a aguardar mudanças na forma de tratamento de sua realidade.

Vindas de todo tipo de localidade do país, as cartas chamaram atenção de Amélia Cohn, desde quando era colaboradora da equipe inicial do Programa Bolsa Família. Ela soube reconhecer nessas correspondências a oportunidade ímpar de entender como a população estava vivenciando a transformação que as novas políticas sociais vinham propondo. Suas análises e sua perspicácia são contagiantes, indicam caminhos sobre o que não podemos deixar de fazer para construir uma sociedade mais inclusiva e igualitária.

O Programa Bolsa Família, que em 2013 completou dez anos, é a face visível da transformação da política social no Brasil, que reconhece em cada brasileiro um cidadão portador de direitos, em vez de distingui-lo por sua capacidade momentânea de contribuir para os sistemas de seguridade social. Essa mudança permitiu criar uma cadeia de confiança entre cidadãos e poder público, local e nacional, em que se busca dar voz ao cidadão e a suas demandas, seja por benefícios sejam monetários, sejam nas áreas de saúde ou de educação. Trata-se de uma novidade em nossa sociedade que tem mostrado frutos positivos no atendimento do cidadão, embora outras demandas ganhem prioridade em substituição às equacionadas.

No entanto, essa mudança é profunda e não ocorre sem percalços, afinal nem todos estão certos de como a população vivencia esse processo. Mesmo que mitigada, há desconfiança do mau uso dos recursos, afinal o paternalismo e o assistencialismo que marcam séculos de nossa convivência social precisam de tempo para assimilar que é possível construir uma sociedade igualitária, em que todos têm voz. Para elucidar esse processo, Amélia Cohn lançou mão da fala, ou melhor, da escrita dos próprios beneficiários. Sua análise revela que as pessoas mais simples entendem seus direitos e seus deveres, sempre que explicados de maneira clara.

A forma que a autora escolheu para construir sua argumentação nos permite ler trechos dessas cartas ao presidente, e não devemos desconsiderar a emoção que alguns deles produzem. A emoção decorre das situações humanas que a autora nos revela, mesmo preservando o anonimato dos autores. As situações de indignidade sofridas por famílias que vivem em regiões pobres do país e em periferias das metrópoles muitas vezes superam nossa expectativa porque ocorrem desnecessariamente. No entanto, o que nos atinge mais é que elas também podem ocorrer com cada um de nós, mesmo quando não nos encontramos em uma situação tão fragilizada.

Não por acaso, entre os obstáculos mais mencionados pela população destaca-se a falta de sensibilidade de gestores públicos locais, estaduais e federais. Como revelam as pessoas que escreveram, nos primeiros anos de implantação do Bolsa Família não eram poucos os gestores que conversavam sem olhar para o interlocutor, sem assegurar-se de que suas perguntas e instruções tinham sido compreendidas ou de que as dúvidas do beneficiário potencial ou efetivo podiam ser mais bem respondidas. As situações descritas não estão tão longe de nosso tempo nem são desconhecidas de qualquer cidadão que buscou atendimento. Ainda há muito por fazer para garantir que o número de servidores da área social seja adequado ao tamanho das tarefas a realizar e que as novas legislações sociais sejam completamente assimiladas.

Temos com esse livro a oportunidade de refletir sobre situações que ocorrem não apenas com os pobres, mas também com cada um de nós em nossa interação com nossos pares, os cidadãos que nos circundam, na rua, no meio de transporte, no trabalho, na praça. Dessa reflexão poderão resultar um agir mais solidário e uma discussão menos preconceituosa sobre como podemos superar os obstáculos que se interpõem ao direito de todo cidadão a uma vida digna.

Paula Montagner é mestre em Economia pela Unicamp