Estante

Para comemorar as três décadas de existência da atual Constituição, a editora da Fundação Perseu Abramo providenciou uma retrospectiva das mais oportunas. Reuniu, em livro, sob o título A Constituição Golpeada 1988-2018, uma coletânea de artigos destinados a discutir o papel da Carta Constitucional dentro do debate público em curso no país. A publicação – organizada por José Celso Cardoso Jr. – alinha as contribuições de especialistas, das mais diferentes áreas das Ciências Sociais, com ênfase nas sensibilidades afins à administração pública. Um enfoque necessário, na medida em que enriquece o padrão das publicações lançadas sobre o assunto, textos em sua maioria voltados para o recenseamento dos impactos jurídicos da vigência do texto promulgado pelos constituintes de 88. Afinal, para além de seus aspectos de direito e justiça, certamente relevantes, era necessário abordar a performance da Carta, desde sua edição, em termos sociais, políticos e econômicos.

Para dar conta dessa pauta, já na introdução da obra, o organizador (em contribuição co-assinada por William Nozak) propõe dois filtros para observar o presente e o futuro da movimentação dos sujeitos coletivos em face do texto constitucional: o primeiro, a necessidade do reconhecimento dos “inequívocos” avanços trazidos pela Carta de 1988, na edificação das “bases” de um Estado de bem-estar social no país. O segundo diz respeito à crítica dos “limites” da Constituição e das distorções decorrentes, no entender dos autores, do caráter “conservador” que presidiu a transição da ditadura civil-militar para a democracia, durante a década de 1980, com inevitáveis repercussões sobre a chamada Lei Maior. Por essa ótica, a forma de lidar com essa contradição consistiria no investimento das forças progressistas na consolidação de um “poder constituinte” capaz de, entre outras tarefas, agindo de baixo para cima, ativar uma “refundação democrática do Estado brasileiro”.

Um ponto de partida consensual? Talvez não. É sabido que nem todas as esquerdas consideram oportuna a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, no momento. E, de igual maneira, há muita divergência na atribuição ao Estado brasileiro, de uma natureza “patrimonialista”, seguindo as perspectivas de Max Weber e Sérgio Buarque de Holanda. Isso apenas para citar dois elementos de fundo das análises abrigadas na presente obra. Porém, todas essas possíveis discordâncias de abordagem político-teórica desvanecem diante da instrumentalidade, do esforço de pesquisa e documentação levado a cabo nas quase 400 páginas que compõem A Constituição Golpeada 1988-2018. Verdadeiro mapa das inclusões, supressões e desfigurações sofridas pelo texto constitucional, ao longo de três decênios, o livro também trata das expectativas dos atores sociais progressistas (ora atendidas, ora frustradas), em ver incluídas na Lei Maior as suas aspirações.

Num levantamento com tais características não poderia faltar a enumeração dos itens de “desmonte” do texto constitucional, dinâmica empreendida e acelerada a partir do advento do golpe de 2016, conforme o inventário procedido por Walkiria Leão Rego e Maria Rita Loureiro. Denunciando a “violação sistemática do Estado de Direito Democrático” por parte de quem (juízes e Ministério Publico), em teoria, deveria defendê-lo, as autoras revelam não só o que há por trás do chamado “despotismo jurídico” como também tornam compreensível o deslocamento de outros atores de destaque na ordem política vigente e sua unidade em torno de um projeto voltado para tornar precário, quando não inexistente, o exercício de direitos sociais previstos na legislação, por meio da edição de contrarreformas como a previdenciária e a trabalhista. Esforço devidamente complementado pela ofensiva em favor da desnacionalização da economia brasileira, cujo maior símbolo – infelizmente não o único – consiste na “entrega” das reservas do pré-sal.

Há muito o que comentar no livro, em todos os artigos reunidos, sempre próximos de um ponto de vista construído a partir das demandas da sociedade, mas sem renegar o tema da transformação radical do conteúdo das instituições de Estado. Refletem essa proposta, aliás, com fidelidade, os dois textos redigidos por José Celso Cardoso Jr. Num dos quais, o autor contextualiza, por meio de quadros descritivos e aprofundados (certamente um dos destaques da obra), a evolução/retrocesso dos dispositivos da Constituição de 1988, à luz da necessidade de conceber e tornar realidade um “projeto nacional de desenvolvimento” com distribuição de renda no país. Noutro aporte da coletânea, Cardoso Jr. recupera para o debate da esquerda uma categoria decisiva para o manejo da vida econômica: a noção de planejamento. Porém, não se trata da defesa de um instrumento tecnocrático de alocação e aplicação de recursos públicos. Cumpre, a seu ver, eleger a democracia e o planejamento como “método” a nortear a prática de governantes, burocracia e sociedade. Procedimento esboçado por nossos governos progressistas, entre 2003-2016, sem efetivamente levar às últimas consequências tal escolha.

A obra segue com o artigo de Milko Matijascic, trazendo valiosa contribuição ao debate sobre Previdência, ressaltando a importância da criação do conceito de Seguridade Social, no texto constitucional e da concepção de direitos e garantias como base fundante da ordem social, através das políticas públicas de caráter universal. Cita a equiparação dos direitos trabalhistas rurais aos urbanos e o reconhecimento da assistência enquanto direito e não benesse, além da ampliação do acesso à saúde, indiscriminada e gratuitamente. Aqui faz a ponte com o debate sobre mercado de trabalho quando aponta o impacto da precarização dos vínculos laborais sobre as fontes de financiamento da seguridade, criando imensas dificuldades para os trabalhadores comprovarem tempo de contribuição. Apesar de todo argumento de reconhecimento dos avanços garantidos pela Constituição de 88, o autor argumenta brevemente o que, na sua visão, seria a limitação da Carta em não garantir a efetivação da seguridade e de suas regras de financiamento, que impediram o equilíbrio financeiro do sistema, assim como a inexistente criação de fundos para serem utilizados no momento de transição demográfica.

Em outro capítulo, a tese fundamental de Tiago Oliveira e Sandro Silva aponta para a trajetória dinâmica e inclusiva que assumiu o mercado de trabalho a partir dos anos 2000, ainda que não tenha havido mudanças substanciais no arcabouço regulatório do processo de contratação, demissão e assalariamento da força de trabalho em relação à década anterior, notadamente marcada por altas taxas de desemprego. Não deixam de citar a medida provisória que definiu a regra de reajuste do salário mínimo, fundamental para a incorporação de ganhos reais ao salário, e a emenda constitucional que regulamentou o emprego doméstico no Brasil, um importante avanço civilizatório.

O Brasil do início do século 21 pode ser caracterizado pela expansão do emprego, com a criação de 1,9 milhão de postos de trabalho ao ano, marca inquestionável dos governos populares. Obviamente houve ali um ambiente de contestação da experiência neoliberal pregressa com a participação mais ativa do Estado na orientação do padrão de desenvolvimento. Todavia, a experiência do golpe de 2016 inaugurou um período de contrarreformas que quebraram a espinha dorsal do trabalhador, reduzindo o papel da Justiça do Trabalho e dos sindicatos, favorecendo o negociado sobre o legislado, e, dentre outras formas flexíveis de vínculos de trabalho, criou o trabalho intermitente, vale dizer, uma categoria de trabalhadores desempregados com carteira.

Tudo somado, nos leva a concluir que, assim como a Carta de 88 nasceu de um processo conturbado de disputas políticas, a sua implementação também é fruto de igual confrontação democrática. Usando as palavras de Varoufakis: “Um fato frequentemente esquecido a respeito das democracias liberais é que a legitimidade de uma Constituição é determinada pela política, não por suas sutilezas legais”1.

Flávia Vinhaes é economista, doutora/UFRJ e vice-presidente do Corecon-RJ

Marcelo Barbosa é advogado, ensaísta e pós-doutor em Literatura Comparada pela UERJ