Estante

cenasjuvenis.jpgO espaço público como palco onde tribos juvenis montam o espetáculo constituído pela sua própria existência coletiva, calcada na produção de um estilo que perpassa sua música, seus corpos, suas roupas e seus adereços.

Por trás da encenação, a resistência à homogeneização, à mediocridade e à falta de perspectivas colocadas para a juventude dos anos 80, através da elaboração de uma identidade distinta. Além disso, a canalização de um imenso desejo de atuação frente às contradições e à hipocrisia socialmente dominantes na elaboração de uma distopia, que (ao contrário da aposta utópica que marcou a geração da década de 60) oferece-se à sociedade como um espelho, no qual, pela evocação e pela mimetização dos traços violentos, autodestrutivos e absurdos do "sistema", se produz um choque e se provoca uma reflexão crítica.

Este é o universo que a análise sensível e competente de Helena Abramo consegue revelar, no qual o senso comum (inclusive aquele predominante em grande parte da produção das ciências sociais no Brasil) não via nada além da passividade e da alienação de uma geração que trairia assim a própria essência "rebelde" da condição juvenil.

Como mostra a autora, a armadilha da imagem do jovem contestador (cujo paradigma mais próximo é a mitificação da geração dos anos 60) consiste justamente em sua capacidade de, convertendo comportamentos e atitudes próprios de um contexto histórico específico em padrão estético, desqualificar e impedir a própria percepção de novos modos de atuação. É para desmontá-la que Helena Abramo desenvolve na primeira parte de seu livro um detalhado percurso demonstrando a constituição da juventude, como objeto das ciências sociais e os diversos enfoques de problematização e análise sobre a condição e os fenômenos juvenis que se sucederam em diferentes conjunturas e escolas teóricas.

Categoria social historicamente recente, cuja vivência por parcelas cada vez mais amplas da população, acompanha a extensão de escolaridade obrigatória e a ampliação do período de vida nela compreendido, é no século XX que a juventude emerge como problema social e, como tal, objeto de preocupações da sociologia.

Delinqüentes, excêntricos, contestadores, rebeldes, revolucionários, protagonistas de desordens e violências aparentemente despropositadas, "alternativos", transgressores, os jovens serão progressivamente identificados como um imenso potencial de transformação ou modernização social, mas também como um poderoso fator de risco para a sociedade.

No caso brasileiro, a pequena produção sociológica voltada para o assunto concentrou-se na polêmica sobre a eficácia do movimento estudantil, como agente de transformação social e, posteriormente, na relação do jovem com a escola e o trabalho. Foi negligenciado e até mesmo desprezado o âmbito da vida que, desde o pós-guerra, a juventude do mundo inteiro elegeu como espaço privilegiado de elaboração de sua identidade própria: o lazer e a tensa relação da criação/apropriação/diluição que a vinculou umbilicalmente à indústria cultural como consumidora e produtora.

Diferenciando estilo, produção intencional de "meios expressivos para negociar espaço e sentido na luta cultural", do modismo marcado pela adesão a padrões estabelecidos, Abramo segue vertente inovadora e rica da sociologia inglesa e possibilita a compreensão das "tribos" punk a dark como manifestações coletivas de uma elaboração crítica e de uma intervenção no espaço público que respondem a um contexto histórico-social completamente diferenciado daquele, vivido nos anos 60 e 70.

É 1978, o ano das greves do ABC paulista, da passagem da "distensão" para a "abertura", que assiste ao surgimento dos punks. Jovens dos subúrbios, que confrontados com o desemprego, os preconceitos contra sua condição social e o descompasso entre o apelo de consumo da mídia e sua incapacidade em realizá-lo, transformam os signos da exclusão em emblema: roupas rasgadas, aparência e atitudes de evocação da violência, ausência de perspectivas (no future), em emblema. Aqui como na Inglaterra, embora com características próprias, aderem à audição e à produção de um rock básico, primitivo, "que qualquer garoto poderia fazer", como enfatiza Abramo.

Já em meados da década de 80, jovens de origem universitária de São Paulo, muitas vezes após uma passagem desmotivadora pelo movimento estudantil, desenvolvem um estilo marcado pelas roupas negras, cabelos geométricos, palidez acentuada dos rostos em contraste com o colorido e a alegria normalmente associados à imagem padrão da juventude de um país tropical.

Cosmopolitas, investindo na experimentação comportamental e cultural, resistindo a classificações (inclusive ao termo dark, cunhado pela imprensa), esses jovens ligados ao rock paulista ocuparam os porões do centro velho da cidade antes de, através de muitas de suas bandas, se tornarem referência cultural central para toda uma geração no país inteiro.

Em comum entre as duas "tribos", guardada a distância da condição de classe, a disposição de assumir (com meios artesanais que afrontaram inicialmente o "esquema" das grandes gravadoras) um papel protagônico na produção cultural que possibilitasse a elaboração ativa do contexto em que viviam.

O amargo realismo exacerbado pela opção de conjurar o inferno presente em vez de arquitetar um novo "assalto aos céus", como bem destaca a autora, revelava, ao invés de indiferença e hedonismo, a sensibilidade para a profundidade de criar uma utopia atravessada pela sociedade e o ceticismo quanto às soluções (a esta altura ingênua) buscadas pelas gerações anteriores.

Exercício de uma reflexão intelectual profundamente comprometida com a ação dos seres humanos no enfrentamento das difíceis realidades frente às quais são colocados. Cenas Juvenis - punks e darks no espetáculo urbano deve sensibilizar especialmente a esquerda, cujo distanciamento da dinâmica real do processo social muitas vezes tem levado à incapacidade de reconhecer o potencial de crítica e transformação oculto, sob formas de manifestação coletiva não catalogadas nos manuais. Deve contribuir para repensar a forma de atuação política e organizativa voltada a um trabalho com e especialmente da juventude.

Alexandre Fortes é doutorando em História Social na Unicamp e ex-diretor de Projetos do Instituto Cajamar.