Estante

Não obstante os esforços que culminaram na publicação, em 2018, da mais recente edição de Che Guevara e o Debate Econômico em Cuba, passados apenas alguns anos, Luiz Bernardo Pericás direcionou novamente a sua – e agora a nossa – atenção a um dos maiores nomes da segunda metade do século 20. Desta vez, os resultados das pesquisas do autor se apresentam em Che Guevara e a Luta Revolucionária na Bolívia, livro publicado originalmente em 1997, republicado em 2008 e agora, em 2023, revisado e ampliado, pela editora Boitempo.

Historiador, com doutorado pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Ciência Política pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, no México, paralelamente às suas atividades como professor nos cursos de graduação e pós-graduação em História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Pericás sustenta constante e sólida atividade intelectual dedicada a investigações e análises no campo da esquerda, já atestadas por significativas premiações em âmbito nacional e internacional.

Nesta terceira edição de Che Guevara e a Luta… Pericás coteja as anteriores com novos documentos, expandindo as contribuições sobre os atributos práticos e teóricos do líder guerrilheiro argentino. Dedicado à atuação do Che na Bolívia, o livro foi resultado de extensas viagens, entrevistas e análises de fontes documentais diversas. Ou seja, uma obra que não apenas soma, mas que muito acrescenta às contribuições de outros autores que se dedicaram a entender Guevara a partir de diferentes aspectos, a exemplo de Massari (1992), Anderson (1997) e Castañeda (2006).

O livro está dividido, grosso modo, em duas partes que englobam o total de sete capítulos.

Uma pequena incursão pelas páginas da introdução já revela a riqueza de fontes utilizadas pelo autor bem como a meticulosidade em sua abordagem.

Pericás abre o livro a partir de uma rica contextualização do cenário político e econômico da Bolívia, no momento e nos anos que antecederam a atuação do Che, tornando possível que o leitor vislumbre a tônica do local que seria destinado à preparação de combatentes internacionalistas.

Findada a introdução, a primeira parte é dedicada ao detalhamento da atuação de Che e sua guerrilha na Bolívia.

Embora o escopo do livro esteja direcionado para a atuação do Che naquele país, não são menosprezadas as investidas revolucionárias que a precedem e, certamente, fornecem insumos a ela. No primeiro capítulo, “Guevara prepara o caminho”, o autor percorre o projeto sul-americano de revolução, cujo início havia sido pensado a partir da organização e ação de focos como aqueles no Peru e na Argentina. Destaque importante também é atribuído ao interesse e aos esforços de Guevara nas lutas na África. Nesse sentido, a campanha realizada no Congo recebe significativa atenção do autor, assim como o constante preparo intelectual e pensamento crítico de Guevara, a exemplo de seus posicionamentos diante das contradições sino-soviéticas.

O segundo capítulo, “A Sombra no Escuro”, oferece um detalhamento do itinerário de Che, desde a sua chegada à Bolívia. Nele aparecem os planos da guerrilha continental e os primórdios do Exército de Libertação Nacional, passando pelas expectativas em seu entorno e seu desfecho após o cerco. Para tanto, o leitor é informado de importantes detalhes do ELN, como os treinamentos e a relação com as cidades.

No entanto, o autor não se limita a pormenores. A correlação dos fatos com a conjuntura boliviana e com os setores sociais é recorrente. Do mesmo modo, é atribuído valor ao pensamento de Che e de outros nomes de destaque à época, como Régis Debray e as controvérsias em seu entorno. Não obstante, ao tratar das baixas e afunilamento da guerrilha, Pericás tece a narrativa a partir de contraposições de diferentes versões dos acontecimentos.

A segunda parte do livro nos traz cinco capítulos. Enquanto a primeira apresentou ao leitor os pormenores da atuação de Che na Bolívia, essa aprofunda alguns aspectos cruciais para compreensão da atuação do ELN e seus desenlaces.

“A área da guerrilha”, terceiro capítulo, detalha a geografia da região de Ñancahuazú, enquanto “Che Guevara e o Campesinato Indígena na Bolívia” expõe a situação dos camponeses e sua relação com os guerrilheiros.

O capítulo quinto, “Partidos Políticos e Guerrilha”, dedica-se ao entendimento da relação de Guevara com os partidos políticos da esquerda boliviana e a posição destes sobre a luta armada. Já Considerações sobre a atuação dos militares, sexto capítulo, trata do desenvolvimento das Forças Armadas da Bolívia e de seu progressivo aumento de importância política, aspecto indispensável para pensarmos na atuação e desfecho do ELN. Outras particularidades menos recordadas também são expostas pelo autor, como a influência de Che na jovem oficialidade e, portanto, os efeitos de suas ideias nas instituições castrenses.

Note-se que esses capítulos nos trazem, de forma entrelaçada, aspectos relevantes para os episódios descritos na primeira parte, sejam eles geográficos, militares ou políticos.

No último capítulo, “Che Guevara no imaginário social boliviano”, o autor se debruça sobre o Che enquanto “mito moderno”, sua presença nos meios políticos e na consciência popular – sobretudo do campesinato. Ao tratar da formação da “imagem santificada” do argentino e dos fatores que corroboraram para a difusão do interesse a seu respeito, o capítulo revela de que modo vários fatores convergiram para fortalecer a presença e reverência de Che ao longo do tempo.

Após as conclusões, Pericás deixa ao leitor importantes fontes documentais na íntegra.

Evidentemente, a exposição resumida do conteúdo dos capítulos não daria conta de todas as virtudes do livro em questão. Para que sejamos devidamente honestos, é importante lembrar do êxito de Pericás na seleção das fontes utilizadas e em seu rigoroso manejo ao longo de todo o livro. Afastando-se de qualquer superficialidade, o autor se expressa através de uma escrita crítica, contrapondo recorrentemente fontes diversificadas.

O autor não se perde em sua narrativa em meio a riqueza de detalhes, mas pelo contrário, conduz o leitor através de uma divisão lógica das partes e capítulos e de uma linguagem que comporta elegância e clareza. Ao manter lado a lado suas habilidades de escritor e historiador, Pericás proporciona ao leitor não apenas uma exposição e análise valiosa sobre o tema abordado, mas também a possibilidade de imergir nos momentos narrados através do valor dos detalhes dispostos e de seu estilo de escrita envolvente.

Vale lembrar que a escassez de estudos e amplas discussões sobre Guevara nos últimos anos (especialmente no quadro brasileiro) faz com que essa obra se torne ainda mais preciosa com sua nova publicação.

Che Guevara e a Luta Revolucionária na Bolívia, portanto, mantém sua pertinência e importância mesmo após mais de duas décadas da primeira edição, permitindo compreender não apenas a atuação de Che enquanto líder guerrilheiro na Bolívia, mas também em um contexto mais amplo, inserindo-o nos complexos processos que marcaram – e moldaram – a esquerda mundial na década de 1960. Extrapolando o mero interesse histórico, o livro tem o poder de incitar reflexões profundas tanto para a militância quanto para a intelectualidade contemporâneas, mantendo-se uma leitura recomendada para todos os que se interessam pela vida do Che e pela história contemporânea da América Latina.

Referências

MASSARI, Roberto. Che Guevara. Grandeza y riesgo de la utopía. Navarra: Txalaparta, 1992.

ANDERSON, Jon Lee. Che Guevara: uma biografia. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1997.

CASTAÑEDA, Jorge. Che Guevara: a vida em vermelho. São Paulo: Cia das Letras, 2006.

Dayane Soares da Silva é doutoranda em História Social na Universidade de São Paulo