Estante

Clarice - uma vida que se contaEste livro centra-se na personalidade literária Clarice Lispector, uma imagem que a crítica infere através das cenas literárias da obra da escritora e que guardam correspondências com o abundante material de referência que pesquisou - fotografias, desenhos, manuscritos, depoimentos, correspondência etc. Toda essa matéria intertextual, intersemiótica e intercultural configura uma imagem em claro e escuro de Clarice - uma imagem, como a obra da escritora e os documentos que deixou, que matiza o essencial e atenua o anedótico próprio das circunstâncias existenciais mais ritualizadas.

Não se trata, pois, de um relato anedótico, afim de um jornalismo superficial e acrítico, submetido a dados exteriores. Ao contrário, os dados biográficos - selecionados com sensibilidade e pertinência crítica - buscam correspondências nas cenas de ficção criadas por Clarice Lispector. Dessa forma, o ensaio narrativo de Nádia Battella Gotlib coloca Clarice como uma personagem, construída (contada) por muitas vozes, respeitando a maneira de ser da própria escritora, que sempre se contou nas múltiplas perspectivas de seus narradores, personagens, entrevistas etc. E destaca, na quarta página de capa de seu livro, a voz de Clarice que conta as Clarices:

Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu por em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável Sobretudo, uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana e animal.

Esse modo de contar da biografia literária de Nádia Battella Gotlib pode ser observada no relato da morte da escritora. Após mesclar dados de entrevista, testemunhos e bilhetes desde o seu internamento no hospital, o seu discurso fecha o capítulo da seguinte maneira:

"Nos seus últimos momentos, Olga Borelli, que com ela ficou até o fim, presenciou - e nos conta - um fato tão intenso quanto teria sido a própria vida literária de Clarice. Talvez seja esta a narrativa-clímax de sua vida, ou seja, de sua morte, mas morte já não de si mesma, da Clarice, das Clarices, mas de uma outra, já totalmente transfigurada em ficção. Ao querer não morrer, Clarice ficcionaliza este trágico espetáculo: o do enxergar-se como uma criação de si, na luta vã de resistir à morte e de não partir novamente. Agora, quem sabe, até seu ponto de chegada.

Na véspera da morte, Clarice esteve no hospital e teve uma hemorragia muito forte. Ficou muito branca e esvaída em sangue. Desesperada, levantou-se da cama e caminhou em direção à porta, querendo sair do quarto. Nisso, a enfermeira impediu que ela saísse. Clarice olhou com raiva para a enfermeira e, transtornada, disse:

- Você matou meu personagem!"

O retrato de Clarice não aparece com a ilusão ingênua de se atingir a totalidade, já que se situa como simétrico de uma personalidade consciente da precariedade da representação, precariedade que singularizou, por sua vez, a vida da escritora, desde as circunstâncias do seu nascimento. A vacuidade da representação, em que tudo é "vago, leve e mudo" não é mero artifício narrativo. Na verdade, essas imagens de Clarice, que parecem esconder os objetos, chama a atenção pela inquietação que provoca, para o caráter problemático dos conceitos de imitação e de verdade.

Logo, não se encontram nele traços inequívocos de um certo gênero de biografias voltado para perfis capazes de constituir paradigmas de ação para situações previsíveis. Um retrato assim produzido seria uma traição à própria Clarice, que sempre manteve um olhar enviesado para os atores sociais de comportamento estereotipado e personagens de caráter ritualizado. Ao mesmo tempo, a técnica do ensaio narrativo, com reflexões ao curso das cenas, procura recobrir o próprio discurso protagonizado por Clarice. Logo no primeiro capítulo, que trata da iconografia da escritora, a crítica coloca em letras brancas sobre o fundo escuro da página: Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário.

Como se sabe, nós nos habituamos a pensar de maneira mais cômoda a partir de modelos, ignorando muitas vezes outras formas intelectuais de ação. Somente agora, esse fato se toma evidente, quando se esboroam estados, nacionais e nocionais, quando todo conhecimento novo só se mostra possível ultrapassando limites dos antigos recortes dos sistemas de conhecimento.

No balanço de fim de século que tem motivado a atenção da mídia, é de se notar a incapacidade de certas generalizações simplificadoras, que mostram formas enganosas de pretensos retratos de corpo inteiro. Clarice, ao contrário, sempre portou um retrato incompleto e fragmentário de sua personalidade. Nádia, em sua posição de crítica, apreende esses fragmentos e os dispõe de forma a marcar as linhas básicas desse corpo que se revela e oculta. Para o seu leitor, ficam os segredos que a escritora oculta (fundamentais para a maneira de ser Clarice), nas linhas do corpo a serem preenchidas. Completa-as, então, pela imaginação.

Para Clarice Lispector, a vida implicava criação sem os espartilhos das teorias e sobretudo das certezas que as enformam. É dessa maneira que a biografia literária de Nádia Battella Gotlib vai se atrever a montar o retrato polifacetado da escritora sem apriorismos, através das vozes que contam. Lugares e situações por onde circulou Clarice (na vida e através de sua obra) transformam-se assim em palavras, como procedimento crítico correlato ao de uma escritora que, procurava traduzir em palavras tudo o que, por assim dizer, pensava ou sentia com seu corpo. Importa, nesse sentido, o traço essencial que vem da criação e não da arte ritualizada. Ou como indica Clarice Lispector, em Um sopro de vida, a salvação só é possível através da criação: E haverá outro modo de salvar-se? Senão o de criar as próprias realidades?

A atmosfera de mistério e de enigma que envolvem Clarice Lispector, autora e personagem, não a tornam um tema fácil para o biografismo de moldes tradicionais. Ao mesmo tempo, Clarice coloca-se como uma personalidade que aceita as máscaras e se disfarça. Mais, em sua vida e no que escreve, Clarice parece uma personagem sempre à procura de um disfarce. Na vida como em sua obra o disfarce parece-nos na verdade uma estratégia de busca sempre renovada de sentidos. Com angústia e solidão, esta mulher de classe média da burguesia, como se auto-rotulou, é atraída pela forma de conhecimento que infringe os códigos estabelecidos.

Nádia Battella Gotlib, em Clarice - uma vida que se conta, numa edição muito bem cuidada, acaba por apresentar assim uma forma renovada de biografismo literário. Ao traçar os "Itinerários" da vida de Clarice Lispector, desenha seus contornos essenciais. Essa preocupação pelos contornos configura o objeto de seu trabalho sem esgotá-lo em suas virtualidades de significação.

As cenas que conta, como foi indicado, respeita a maneira de ser de Clarice, que emerge assim como a protagonista da narrativa, que "fala" à própria crítica e ao leitor. Sua estratégia é de realçar o objeto focalizado evidenciando seus traços efetivamente significativos. Para tanto, a par das virtualidades narrativas e de reflexão de seu texto, deve-se relevar a excelência da recolha crítica, habilmente disposta em seu discurso. Assim, na Vida que se Conta, ela realça Clarice e sua práxis existencial, talvez fazendo suas as palavras do poema de Carlos Drummond de Andrade com que encerra o livro:

Clarice
veio de um mistério,
partiu para outro.

Ficamos sem saber a
essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.