Estante

Combate nas Trevas - A Esquerda Brasileira: Das Ilusões Perdidas à Luta ArmadaA história da esquerda brasileira está cercada para as jovens gerações de mistério e fascínio. Mistério, porque aparece quase sempre fragmentada nas versões da direita, nos comentários apaixonados de velhos militantes ou em referências enigmáticas feitas no curso das lutas políticas de hoje. Assim, é frequente que os jovens militantes do movimento sindical ou de outros movimentos interpelem seus companheiros mais velhos para perguntar-lhes o que significa tal ou qual sigla, o que ocorreu exatamente em tal momento de nossa história ou qual é o conteúdo político do maoísmo, do trotskismo, do guevarismo etc.

Como esta história é apreendida em pedaços, como se tratasse de um vasto quebra-cabeças, e como muitas vezes ela é invocada para apoiar ou negar posições políticas, é normal que provoque fascínio e estimule a curiosidade de muitos.

O livro de Jacob Gorender, Combate nas Trevas - A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas a luta armada, vai contribuir para que esta curiosidade seja em boa parte satisfeita. Gorender foi até 1967 dirigente do Partido Comunista Brasileiro, tendo com ele rompido para formar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Em 1970 foi preso, torturado, tendo ficado quase dois anos nos cárceres da ditadura.

A partir de sua vivência e recordações, mas, sobretudo, de uma vasta pesquisa em livros, documentos de organizações e da realização de dezenas de entrevistas, o autor pode reconstituir a trajetória dos partidos e grupos de esquerda, sobretudo no período que vai de 1964 até 1974, ano em que a esquerda brasileira se encontrava mergulhada em sua mais grave crise, depois de ter sido esmagada pela repressão da ditadura.

Um dos pontos importantes da reconstituição de Gorender é o lugar dado ao período pré-64, particularmente à intensa fase das lutas populares entre 1961 e 1964, quando grandes contingentes de operários, estudantes, camponeses e setores de classe média, sem falar nos sargentos e alguns segmentos da própria oficialidade das Forças Armadas, movimentaram-se pela consecução das chamadas "Reformas de Base", um conjunto de reivindicações apresentadas como capazes de promover um desenvolvimento econômico com maior distribuição de renda e aprofundar a democracia no país. A derrota da esquerda e dos movimentos populares em 64 acabou por generalizar a impressão de que o movimento nesse período não tinha tido a relevância que se dizia, ou, no melhor dos casos, era excessivamente superficial. Depois de ler os capítulos que o autor dedica a esta fase, a análise sobre ela terá de ser mais judiciosa.

Mas esta primeira parte tem como função básica introduzir elementos de compreensão para o que vem depois.

Entre 1964 e 1968, a despeito da perplexidade e mesmo de reações primárias de certos setores da esquerda frente ao golpe, criam-se condições para uma intervenção desta em alguns movimentos sociais de grande importância, como é o caso do movimento operário e do estudantil, ambos granjeando simpatias junto a camadas das classes médias que se sentiam ludibriadas pelos militares.

O grande derrotado na esquerda é o PCB, e do seu interior, principalmente, vão surgir muitas das organizações que começarão a atuar nesse período, algumas com claras definições pelo desencadeamento a curto prazo de ações militares contra o governo. Num outro cenário desenvolve-se, igualmente, uma crise no interior dos grupos que deram ou apoiaram o golpe. O resultado deste último enfrentamento é o fechamento de 13 de dezembro de 68 (o AI-5), quando o governo cria as condições, entre outras coisas, para reprimir a esquerda com toda a impunidade. Gorender mostra como modificam-se as condições de luta. A esquerda corta-se das massas, mas continua a apostar na iminência da crise do capitalismo brasileiro, que criaria condições para a luta revolucionária (tida como sinônimo de luta armada). O período que vai de 68/69 até 74 é o desmantelamento total da esquerda revolucionária, o que o Estado consegue através de uma política de utilização sistemática da tortura.

Talvez fosse importante que Gorender enfatizasse mais o fato de que a derrota da esquerda - da nova e da velha - não se deve tanto à repressão, que foi violenta, mas tem de ser creditada em muito aos próprios erros das organizações. Ele tem presente este fato, e o afirma muitas vezes, mas alguns aspectos ficam a nos exigir maior aprofundamento. Por exemplo, em que medida o fracasso não se deve ao fato de que a ruptura da nova esquerda com a velha foi mais aparente do que real, não só quanto à caracterização de seu projeto de revolução, como por sua incapacidade de repensar o problema do partido político, elitista e messiânico, e pela ausência de uma reflexão mais de fundo sobre o problema da democracia.

Estas discussões têm uma importância particular para o PT hoje. No interior do partido militam milhares de companheiros vindos dessas organizações de esquerda. Uma grande maioria não chegou a realizar um ajuste de contas com seu passado. Coisa que o livro de Gorender em muito contribuirá para que ocorra. Somente isto já aconselha sua leitura e, sobretudo, sua discussão.

Marco Aurélio Garcia é professor da Unicamp, historiador e coordenador do arquivo Edgar Leuenroth, que se dedica ao estudo da memória do movimento operário brasileiro. É membro do Diretório Regional do PT - SP