Estante

Da guerrilha à imprensa feministaO livro de Amelinha Teles e Rosalina Santa Cruz Leite é, sobretudo, sobre história(s) das mulheres na luta contra a ditadura (31 de março de 1964-15 de março de 1985) no Brasil, muitas vezes esquecida(s): seja porque não alcançaram postos de “liderança” nos movimentos sociais, partidos, meios de imprensa etc., por sua condição de mulher, seja porque suas atividades “femininas” não eram (e não são) valorizadas em nossa sociedade. De Delsy Gonçalves de Paula, militante da Ação Popular (AP) e figura importante no processo de alfabetização de operários durante as greves de Contagem (MG), a Dinalva Oliveira Teixeira, vice-comandante na guerrilha do Araguaia, abordadas no primeiro capítulo (“Era um tempo de guerra, era um tempo sem sol...”), o livro chama à memória, reconstrução e registro de figuras fundamentais do período.

Especial atenção é dada à chamada imprensa independente, clandestina ou nanica e feminista no pós-luta armada no país. A publicação de Brasil Mulher, entre 1975 e 1980 – da qual as autoras participaram ativamente –, e Nós, Mulheres, entre 1976 e 1978, são o escopo do livro e justificam seu recorte temporal. Longe de configurar em demérito, essa característica traz àquele(a) que lê informações jamais encontradas em livros nos quais não há entrecruzamento entre pesquisa e pesquisado(a). Funcionamento, propostas, projeto editorial gráfico, divergências políticas, dinâmica editorial, perfil das participantes e escolhas de pautas, questões abordadas no segundo capítulo (“Da guerrilha à imprensa feminista”), da forma como são relatados, faz-se possível apenas para quem esteve dentro de sua realização. Cabe mencionar, ainda, que o caráter parcialmente autobiográfico, conjugado à pesquisa acadêmica e a publicações de temáticas relacionadas de ambas as autoras, torna mais robustas as fontes primárias (como entrevistas) e secundárias (como revisão bibliográfica) encontradas no livro.

Uma característica importante da obra, contida no terceiro capítulo (“Memorial dos jornais feministas: Brasil Mulher e Nós, Mulheres”), é a retomada do escopo das publicações destinadas às mulheres das classes populares (embora as edições fossem grandemente compradas por mulheres escolarizadas de classe média), no lugar das revistas femininas mainstream. Outra questão interessante é o “Levantamento e análise das matérias publicadas no Brasil Mulher e Nós, Mulheres” (capítulo 4), no qual é realizada a categorização, inclusive quantitativa, das matérias por temas conjunturais (custo de vida, inflação, organização popular; anistia e denúncias de presos políticos; eleições 1976/1978; entre outros) e específicos (creches, educação, direitos reprodutivos/saúde da mulher; trabalho; violência; direitos; discriminação racial; trabalho rural; aborto e divórcio).

Há, ainda, o resgate das memórias das mulheres diretamente envolvidas com as duas publicações, bem como a trajetória pessoal de cada uma. Entre perfis políticos e histórias pessoais, mesclam-se filhos(as), política, militância, torturas, exílios, carreiras, dores, alegrias. Aproximamo-nos de Terezinha Zerbini, Joana D’Arc Bizzotto Lopes, Beatriz (Bia) do Valle Bargieri, Iara Prado, Vera Soares, Fernanda Carneiro, Rachel Moreno, Maria Quartim de Moraes, Renata Villas Boas, Amelinha e Rosalina em “O protagonismo feminista: tensões e ambivalências” e “Com a palavra, as protagonistas” (respectivamente, capítulos 5 e 6).

Temáticas específicas do livro referem-se a anistia, custo de vida e eleições, no capítulo 7 – no qual transbordam temas relativos ao processo de distensão no Brasil –, e sexualidade em “Nem vítimas, nem cúmplices: o sexo na imprensa feminista”, no capítulo 8. Sobre este, é importante ressaltar a ênfase dada ao fato de que o debate, ainda relativamente carente de politização se comparado aos dias atuais, é um dos pioneiros no país.

“Questões teóricas do feminismo nos anos 1970”, nono e último capítulo, traz as principais influências sobre as mulheres que participaram dos dois jornais.

Conjugavam, predominantemente, feminismo e marxismo, mas havia ainda influências existencialistas e psicanalistas (no nível teórico-filosófico): Alexandra Kollontai, Simone de Beauvoir, Heleieth Saffioti, Clara Zetkin e, sobretudo, Juliet Mitchell.

Brasil Mulher e Nós, Mulheres foram, indubitavelmente, dois veículos que fizeram avançar as pautas feministas no Brasil, sob um período de ditadura no qual as temáticas relacionadas a gênero não tinham espaço em partidos políticos (oficiais ou clandestinos), movimentos sociais, organizações da sociedade civil etc. O debate nasceu a ser mais bem instrumentalizado, mas nasceu, e é isso que importa. Se os Congressos da Mulher Paulista ocorreram, é porque foram em parte impulsionados pelos jornais. Se mulher virou pauta nos espaços políticos, idem. Se existem núcleos de gênero nas universidades, também. Se hoje observamos melhorias nos indicadores de gênero nacionais, igual. É desse resgate histórico-biográfico que trata o livro: com a palavra, a história.

Katiuscia Moreno Galhera é doutoranda em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bolsista pela Coordenação de Apoio de Pessoal de Nível Superior (Capes)