Estante

Democracia e marxismoÉ sabida a reação de Engels quando soube que dariam ao partido socialista alemão o nome social-democrata. Ele teria dito que o nome era redundante já que a democracia só seria efetivamente realizada no socialismo. Assim, falarem social-democracia seria um pleonasmo no sentido de que só haveria plena democracia no socialismo e que o socialismo só o é realmente quando rigorosamente democrático.

 A relação entre democracia e socialismo é questão decisiva sobretudo em nossa época de déficits democráticos e de crise do socialismo, em que busca-se denunciar uma estrutural incompatibilidade entre socialismo e democracia. Neste sentido vale a pena lembrar a atitude de Engels e buscar reconstituir as vicissitudes do projeto socialista. A centralidade deste tema não precisa ser enfatizada, do mesmo modo que seria ocioso insistir na complexidade dos elementos envolvidos. Trata-se, sob vários aspectos, de questão-chave do mundo contemporâneo. De sua discussão participou o melhor do pensamento social, em sua construção envolveram-se milhões de pessoas no mundo inteiro, e se seus resultados, algumas vezes, como no processo stalinista, assumiram as cores da tragédia, sua presença, foi, com certeza, uma formidável usina das melhores aspirações da humanidade: a solidariedade,a liberdade,ajustiça, a beleza, a verdade.

O livro de Juarez Guimarães - Democracia e marxismo - é uma significativa contribuição para o debate sobre as relações entre socialismo e democracia. O foco escolhido pelo autor privilegiou a reconstituição da trajetória da cultura marxista buscando identificar até que ponto seria legítima a acusação liberal sobre as raízes antidemocráticas do marxismo.

Bem escrito e fluente, denotando um amplo domínio da problemática, o livro é uma bela demonstração da justa combinação entre intenção militante e respeito às regras do melhor da tradição acadêmica.

O valor de uma obra crítica mede-se, também, pelos interlocutores que elege. Aqui, se o objetivo tem grandeza e atualidade - a explicitação de uma vertente no interior do marxismo rigorosamente coerente e não-determinista, aberta e democrática - seus interlocutores, os pensadores liberais que resolveu discutir - Croce, Weber, Popper e Bobbio - dão à tarefa dignidade e atitude. Afinal, trata-se de terçar armas, em defesa do marxismo, com, talvez, o melhor do pensamento liberal neste século.

 Desde logo diga-se que esta não é tarefa fácil, pois que apresenta os perigos típicos de todas as propostas abrangentes, que é a impossibilidade de se responder a todas as inumeráveis questões que são multiplicadas pelas diversas perspectivas que suscitam. Assim, cada leitor informado, poderá sempre apontar tema-autor-questão-texto-evento, para ele importante, ausente do livro em tela. De qualquer forma, e definitivamente, registre-se que,em que pese eventuais reparos, o livro de Juarez Guimarães é uma inestimável contribuição ao melhor que o marxismo é capaz de ser, isto é, à inteligência, à pesquisa, à erudição, à teoria e à prática, rigorosamente críticas e autocríticas, antidogmáticas e antideterministas, abertas à complexidade e à pluralidade, instrumentos, por isso mesmo, de um efetivo projeto emancipatório.

 A defesa de um marxismo crítico, aberto e plural, não determinista, é feita por Juarez Guimarães a partir de três teses básicas: 1) contestando a leitura dos campeões liberais já citados, ele mostra que o marxismo não pode ser reduzido e identificado a algumas de suas interpretações reducionistas-deterministas-exemplarmente postas nos marxismos oficiais da IIª e IIIª Internacionais. Neste sentido, o grande mérito de Juarez aqui é reconhecer a existência de uma tensão no interior da obra do próprio Marx, que se é, no geral e centralmente, um pensador que repeliu os esquematismos e simplismos reducionistas e deterministas, não fugiu inteiramente ao seu tempo e explicitou, em alguns momentos, recaídas deterministas-cientificistas; 2) uma segunda tese do autor é a demonstração dos limites e incoerências das perspectivas deterministas da cultura marxista de Kautsky a Althusser; 3) uma terceira tese reivindica a existência de um núcleo rigorosamente coerente e antideterminista, no campo marxista, o constituído pela obra de Antonio Gramsci.

São 278 páginas, 12 capítulos, 219 referências bibliográficas, numa argumentação equilibrada e eficaz que denota um notável esforço de leitura e sistematização, que sobretudo demonstra as enormes virtualidades do marxismo, sua definitiva inscrição no horizonte político e cultural do nosso tempo.

A estrutura do livro é equilibrada e coerente. O primeiro capítulo traz a súmula da crítica liberal ao marxismo tal como aparece em Croce, Weber, Popper e Bobbio. Num segundo capítulo, há a localização dos autores - correntes no interior do marxismo que teriam abraçado uma perspectiva dogmático-determinista. Um terceiro capítulo identifica na própria obra de Marx uma tensão entre elementos deterministas e antideterministas, tensão esta que teria uma "resolução" na medida que se leve a sério o caráter "aberto" de sua concepção de história e, acrescento eu, a centralidade da luta de classes.

O  quarto capítulo, talvez com alguma injustiça, apresenta Engels como o ponto de partida de uma primeira onda determinista no interior do marxismo. O quinto capítulo trata do que foi chamada de segunda onda determinista e discute as obras de Kautsky, Plekhanov e dos austro-marxistas. O sexto discute a obra de Lukács como uma alternativa antideterminista,que acabou por ser isolada e esvaziada. O sétimo trata da terceira onda determinista representada pelo marxismo da IIIª Internacional. O oitavo capítulo, central na argumentação, é o dedicado a Gramsci e sua efetiva contribuição para um marxismo não-dogmático e antideterminista. O nono capítulo discute a teoria crítica, a partir das obras de Adorno e Horkheimer e o impasse a que teriam chegado. O décimo é dedicado a Althusser e ao que o autor chamou de determinismo estruturalista. O décimo primeiro é dedicado ao chamado marxismo analítico. O último, o maior do livro, 36 páginas, é dedicado à obra de Habermas. Como se vê, é projeto de envergadura, resultado de um longo convívio coma rica e complexa cultura marxista.

 Não há na argumentação de Juarez Guimarães qualquer tentação de evasão ou simplificação indevida. As distorções, as mazelas, as vicissitudes da cultura marxista são analisadas sem escamoteações, como também o são as virtualidades da retomada do marxismo como projeto emancipatório, como instrumento da construção de um socialismo que subsuma, dialeticamente, as relações entre liberdade, igualdade, entre história e contingência, entre determinismo e subjetividade, entre acaso e necessidade.

 Neste esforço de dialogar com o melhor da tradição liberal, de submeter a escrutínio o central da cultura marxista referente à concepção de história, Juarez Guimarães omitiu referências importantes. Se ele tivesse considerado a obra de Ernst Bloch, de Henri Lefebvre, da Escola da Filosofia da Práxis, da ex-Iugoslávia, de Sartre e sua Crítica da razão dialética e, sobretudo, de Walter Benjamin, certamente, ele teria ampliado as bases das perspectivas antideterministas no campo marxista.

Também neste terreno um tanto impertinente das cobranças de omissões lembre-se que tanto Rosa Luxemburgo - e a centralidade que ela estabelecia para a luta de classes-, quanto Trotsky - e o conceito decisivo de desenvolvimento desigual e combinado - são duas perspectivas que teriam também ampliado o universo não-determinista do marxismo, que Juarez Guimarães quer sublinhar.

 É também digno de registro a existência de um objeto oculto, pressuposto, que acompanha todo o desenvolvimento da argumentação do autor como uma sombra. Trata-se da democracia. Enunciada no título do livro, o tema da democracia é a referência presente e oculta de toda a sua trajetória, cuja síntese talvez seja a afirmação de que a democracia, a verdadeira democracia, só se realiza no socialismo. Isto significa de um lado denunciar a usurpação liberal da idéia de democracia e de outro significa reafirmar o marxismo como a grande matriz de um projeto radicalmente democrático e libertário.

 Por tudo isto, Democracia e marxismo é uma chama que aquece e ilumina os caminhos dos que continuam a nutrir esperanças apesar das asperezas do tempo.

João Antônio de Paula é professor do Cedeplar/Face/UFMG