Estante

Maria Rita Kehl, em seu novo livro O Tempo e o Cão: a Atualidade das Depressões, nos presenteia com uma discussão sobre um tema que tem causado questionamentos em vários campos do conhecimento. Interessante sua abordagem: por se tratar de uma psicanalista escritora, ela traz sua experiência clínica e aponta consequências e soluções por intermédio da leitura dos principais pensadores da ciência do inconsciente, além de traçar o debate com a filosofia, com a filosofia da história (Walter Benjamin, Bergson) e com poetas como Baudelaire, entre outros. A depressão está também relacionada à modernidade, exposta de forma didática e concisa, apesar de densa, tendo como resultado uma análise que trata de questões nas quais a contemporaneidade, indelevelmente, marcou a vida dos sujeitos com esse mal-estar.

Sabemos todos que a psicanálise, principalmente quando se trata da lacaniana, possui um jargão hermético de difícil compreensão até mesmo para os mais íntimos ao pensamento de Freud e de Lacan. Porém, ao ler esta obra, adentramos no universo complexo de termos “lacanescos” a partir de uma introdução implícita que vai sendo mostrada ao longo de sua descrição. Isso é percebido na forma como a autora vai orientando o leitor para determinados conceitos elucidados em notas de rodapé ou no curso livre de suas ideias expostas nos parágrafos. Seu debate é interessante por se tratar de um problema que está na ordem do dia dos consultórios dos psicoterapeutas em geral, nas escolas, dentro de nossa casa, com nossos vizinhos e em nosso ambiente de trabalho.

O livro é dividido em três partes. Na primeira, “Da melancolia às depressões”, temos a diferenciação do conceito de melancolia desenvolvido por Freud e a aproximação deste com o conceito de depressão porque ambos possuem frequentes analogias sintomáticas (p. 41). A autora situa o sofrimento depressivo na linha de continuidade do lugar ocupado pelos melancólicos na tradição do pensamento anterior ao criador da psicanálise (p. 41). A teoria da melancolia foi elaborada no século passado levando-se em conta as demandas que as histéricas dispunham na clínica freudiana. Hoje, temos a queixa dos depressivos porque estamos inseridos em uma realidade histórica que construiu essa demanda. A contemporaneidade surge com o aumento do fenômeno das depressões e, segundo Maria Rita, nela e com ela o sujeito cede de seu desejo e, em seu destino, trai sua vida e a si mesmo (p. 74).

A autora traça uma trajetória histórica – da Grécia Antiga, passando pela Idade Média, pelo Renascimento e pelo Romantismo, aos dias atuais – sobre a condição melancólica de filósofos, poetas, e conclui que o homem contemporâneo experimenta um desamparo quando percebe que nem mesmo a linguagem tem o poder de transpor o abismo que o separa da natureza e que a tarefa solitária do poeta, por sua conta e risco, é dar nome ao real (p. 74). Tal como os poetas, os depressivos se situam nesse estado ao qual a linguagem não consegue chegar. Daí surge a submersão, que o puxa para o estado de silêncio, de apatia e de indiferença e pode durar anos a fio.

A modernidade se apresenta para nós repleta de desafios e, de acordo com Benjamin, para vivê-la “é preciso uma constituição heroica”, que significa não recuar diante dos desafios que ela propõe e não se deixar enfeitiçar pelas maravilhas com que ela nos seduz (p. 75). Podemos ficar imersos em uma sedução ilusória que pode provocar um conformismo (sinônimo de fatalismo). Em nossa sociedade isso tem atingido ferozmente adolescentes e jovens através da sedução exercida pelas formações imaginárias predominantes no estágio atual do capitalismo (p. 90).

Diante desse estado no qual o depressivo se encontra, temos sua recusa à oferta de um gozo oriundo das seduções do capitalismo. O depressivo sofre com um sentimento de culpa que o legitima como tal e considera sua vida traída por não ter sido capaz de corresponder aos ideais contemporâneos de bem-estar e felicidade.

Na segunda parte, “O tempo e o cão”, a autora trata da questão do tempo na modernidade e diz que ele é a condição ontológica do psiquismo (p. 111). A temporalidade contemporânea, frequentemente vivida como pura pressa, seja nos grandes centros urbanos, seja nas cidades do interior que dão conta dessa pressa por meio da internet, atropela a duração necessária que caracteriza o momento de compreender, a qual não se define pela marcação abstrata dos relógios. O tempo está tão veloz que os relógios não acompanham essa pressa.

Maria Rita nos faz compreender que o tempo é instituído, para cada sujeito, no intervalo entre a tensão de necessidade (pulsional) e a satisfação: mas como, para o filhote humano, a satisfação da necessidade depende inteiramente de que um Outro queira se ocupar dele, tal intervalo logo se apresenta a ele como o tempo que separa a demanda do Outro da possibilidade de o sujeito responder a ela. Dito de outra maneira: o sujeito do desejo, em psicanálise, é um intervalo sempre em aberto, que pulsa entre o tempo próprio da pulsão e o tempo urgente da demanda do Outro (p. 112).

O uso do tempo pelo depressivo é um tempo vazio com o qual ele recusa a urgência da vida contemporânea e remete a outro modo de viver o tempo, que a modernidade recalcou ou, pelo menos, reprimiu (p. 135). O tempo para ele é tão lento que não permite viver essa aceleração imposta pela modernidade.

A vida psicológica sobrevive, embora constantemente inibida pela consciência prática e útil do presente e, em nosso caso, pela pressa do tempo. Nossa memória aguarda simplesmente que uma fissura se manifeste entre a impressão atual e o movimento concomitante para fazer passar aí suas imagens (p. 150). Qual o desligamento momentâneo da ação eficaz que permite ao sujeito passar do registro da vida prática para o registro do sonho?, questiona a autora. Há a possibilidade de experimentarmos alguns intervalos de tempo relativamente independentes das exigências do presente imediato, pois temos uma conservação do passado no presente (p. 151). E isso se dá como uma das condições da experiência, como nos diz Benjamin: “Se a experiência não nos vincula ao patrimônio que herdamos, ele se torna um peso, ou um adorno vazio, e a velocidade das mudanças que se generalizaram a partir da guerra de 1914 exigiu que as pessoas se despojassem tanto de sua própria história quanto da memória dos antepassados” (p. 156).

Em O Narrador, de Benjamin, temos uma desmoralização da experiência na modernidade cujo pano de fundo não declarado são as drásticas mudanças na temporalidade causadas pela predominância da técnica não apenas sobre outras formas de relação com a natureza, mas acima de tudo nas relações entre os homens (p. 154) e dos homens com a sua cultura, causando esse fenômeno depressivo. Como exemplo temos Baudelaire, que na Paris do século 19, com o advento das transformações do mundo industrial, torna-se melancólico e transfere para a sua poesia um desejo de ser lido como um escritor antigo. Nessa sua empreitada literária, paga um preço alto de uma estratégia pessoal para dar conta das transformações sociais e culturais das quais foi protagonista. Utilizou o recurso simbólico da poética para se proteger frente à sociedade que surgia veloz e não lhe possibilitava sonhar ou imaginar uma vida lenta, tal como os românticos a desejavam.

Em “O recuo e o depressivo”, a terceira parte do livro, temos a experiência clínica, em que a autora, exemplificando com casos de depressão, faz uma diferenciação entre a posição subjetiva dos depressivos e a estrutura neurótica dos obsessivos(as) e das histéricas(os). Elucida-nos Maria Rita: O que mudou para as mulheres pós-freudianas, com o auxílio da própria Psicanálise, foi a abertura de uma infinidade de novos destinos pulsionais para o impulso interditado. A histeria não está superada, mas as perspectivas de cura, para as mulheres, são hoje mais promissoras do que a de meramente “substituir as grandes crises de sofrimento [histérico] por um sofrimento cotidiano e suportável”, como escreveu Freud de maneira pouco consoladora a uma de suas pacientes histéricas (p. 218). Entretanto, é necessário um longo período no qual o sujeito deprimido tenha de suportar/conter suas escolhas pulsionais, por isso sofre muito. Neste livro há a compreensão da depressão a partir de uma leitura da clínica das neuroses, e o leitor familiarizado com a teoria do inconsciente percebe claramente que não é uma obra que pode ser acompanhada por um leitor que não tenha uma compreensão de conceitos do métier psicanalítico. Com a clareza sobre a depressão ser um sintoma social da contemporaneidade, a autora nos alerta que os depressivos devem ser, como todos os que procuram a psicanálise, escutados um a um. O sentido do sintoma social não dispensa a singularidade do sujeito (p. 273).

Danieli Machado Bezerra é historiadora, mestra em Ciências Sociais. Atualmente estuda no Instituto de Clínica Psicanalítica (ICP), filiada à Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), e contista