Estante

Do Golpe ao Planalto A vida de repórter tem algo de nômade. Não só pelas tarefas empreitadas, que o levam para vários espaços, em tempos diferentes, gerando um rosário de contas esparsas e potencialmente fragmentárias. Nisso também vai a natureza mesma do material com que o repórter lida, em cada reportagem.

A origem da palavra remonta ao verbo francês reporter, narrar, contar. Portanto, o repórter é, antes de mais nada, um narrador. Num ensaio clássico (“O narrador”), Walter Benjamin diz que há dois tipos básicos de narrador: o camponês, que fica na sua comunidade e conta suas histórias no ritmo do trabalho feito e da permanência, e o viajante, que devassa os espaços e narra sobre o alhures, os “outros lugares”, as “outras passagens”. O repórter moderno, nascido com o jornalismo que se desenvolveu a partir do século 18, pertence mais ao segundo tipo de narrador, mesmo que trabalhe sempre numa mesma cidade: a cidade contemporânea é o reino por excelência da fragmentação.

Ao contrário de “repórter”, a palavra “reportagem” é de origem recente: no português veio também do francês, e nasceu no século 19. Segundo o Houaiss, o primeiro registro escrito data de 1865, no francês reportage: a reportagem é um gênero do jornalismo moderno.

Kotscho narra sua vida de jornalista como uma grande reportagem: é o repórter de si mesmo. Conta como, pulando de redação em redação, desde os idos da ditadura militar, passando pela Folha de S.Paulo, Estadão, Jornal do Brasil, virando correspondente na Europa, terminou, paradoxalmente, encontrando um destino. Esse ponto de chegada, que foi novo ponto de partida, deu-se no encontro com Luiz Inácio Lula da Silva nas greves do ABC ao final da década de 70 e começo da de 80.

A partir daí Kotscho se tornou uma espécie de repórter confidente de Luiz Inácio, acompanhando-o na fundação do PT, nas principais campanhas e lutas, até as das eleições presidenciais e a vitória de 2002. O livro deveria terminar com o afastamento de Ricardo Kotscho do governo, em 2004, por razões de natureza pessoal, segundo conta. Entretanto, as vicissitudes históricas da crise do governo Lula e do partido em 2005, a partir das denúncias sobre o caso Waldomiro Diniz e do então deputado Roberto Jefferson, levaram o autor a redigir um posfácio, no qual aborda os primeiros desdobramentos do terremoto que abalou o Planalto e o PT.

A narração é fascinante, tendo (a meu ver) os pontos mais altos nas histórias da origem da família Kotscho e nas histórias das caravanas da cidadania e nas grandes campanhas presidenciais, a partir de 1989. Há um relato extraordinário, que é o do reencontro entre o pai de Kotscho e sua mãe (a avó do repórter), por acaso, nas ruas de uma cidade européia devastada pela guerra.

Ele lá fora procurar parentes que tivessem sobrevivido, e ela vagava pelas ruas como mendiga, quando se cruzaram e, depois de passar por ela, o pai do futuro repórter se convenceu de que aquela passante era quem de fato era.

Nas caravanas e nas campanhas ressalta-se a verdadeira epopéia que foi a travessia de Lula por este país, desde sua terra natal, embora o repórter a acompanhe a partir de São Bernardo, até o Palácio do Planalto. A trajetória evoca algo do porte da Coluna Prestes, que, partindo do Rio Grande do Sul na década de 20, refundou a consciência do país. E Ricardo narra tudo com grande vivacidade, como o excelente repórter que sempre foi, é e será.

Paira em tudo, neste livro indispensável, um tom de ingenuidade quanto à análise de certas circunstâncias políticas. Vou dar dois exemplos, os que penso mais importantes: a visão do complicado relacionamento da grande imprensa com o governo Lula e a visão das contradições da política econômica e decisões conexas por parte do governo. No primeiro caso, Kotscho insiste na visão de uma série de mal-entendidos como base do mau relacionamento, escapando-lhe uma visão mais aprofundada da enorme incompatibilidade entre empresas jornalísticas dominadas por e a cavaleiro de uma ideologia neoliberal e a aceitação de uma trajetória como a de Lula e do PT.

E, na outra, falta-lhe pesar a profunda decepção provocada pelas opções conservadoras do governo em largos setores da sociedade e em companheiros das primeiras horas.

Mas essas são as opções do repórter, que informam seus pontos de vista numa narração brilhante. O livro se interrompe no momento em que Kotscho deixa o lugar seguro no Planalto e, ao que parece, prepara-se para novas trajetórias. Pergunta- se, pois: ...e depois? É a mesma pergunta que paira agora sobre o objeto e sujeito de sua narração, o presidente e seu governo: e depois? Ou melhor, e agora?

Flávio Aguiar é editor da Agência Carta Maior