Estante

Dos filhos deste soloSemelhante, no caráter de pesquisa sistemática, a outros estudos clássicos sobre o desbaratamento da resistência à ditadura militar - como Combate nas trevas, de Jacob Gorender, e Brasil. Tortura nunca mais -, entretanto duas linhas-mestras deste livro devem ser realçadas.

A primeira é, mais uma vez, a competência da repressão, que soube apresentar as execuções e os assassinatos por tortura como fraqueza dos guerrilheiros. Ou eles se suicidavam ou, num lance mais refinado, cediam aos suplícios e delatavam tanto companheiros quanto pontos - e, não agüentando o remorso, atiravam-se em baixo do primeiro carro que passasse.

Assim os homicídios foram noticiados nos jornais e na televisão, e todo mundo acreditava, para desmoralização geral. Este livro, construindo as conexões com o quadro mais amplo, mostra como todas essas armações foram montadas como espetáculo público e aquilo que objetivavam.

A segunda é algo nem sempre lembrado ou sabido. É verdade que os arquivos dos Dops do país todo foram abertos, mas não os arquivos secretos de instituições como Oban, Parasar, Cenimar etc. E enquanto isso não ocorrer, a identificação dos facínoras continuará ao léu do azar, como, e é apenas um exemplo, ocorreu com a deputada Beth Mendes, ao deparar-se com o militar que fora seu algoz pessoal na figura do adido do Exército no Uruguai em 1985.

O livro Dos filhos deste solo, dossiê de caso por caso dos assassinatos, relatado conforme partidos e organizações, é contido e nada piegas. Há um resumo de cada episódio, completado pela análise de suas ligações com o contexto político. O que mais espanta é que todos sejam conectados, corroborando-se uns aos outros.

Os horrores, não cabe aqui esmiuçá-los: estão todos lá. Trata-se de um inestimável serviço prestado à causa da democracia e dos direitos humanos. Deixa ainda explícito como aquele equívoco histórico e derrota das oposições que se chamou, sardonicamente ao que parece, "anistia mútua”, na verdade deixou aberta uma chaga insanável no tecido social brasileiro. Os verdugos continuam, ao fim e ao cabo, tanto imunes quanto inimputáveis, e ainda está para nascer o dia que a lei - para nem falar da justiça - predomine. Ontem era a vez do revolucionário letrado, agora é a vez do delinqüente analfabeto, ambos nivelados no igualitarismo da tortura e da chacina.

Walnice Nogueira Galvão é do Conselho de Redação da revista Teoria e Debate.