Estante

Estes escritos são sobre Walnice Nogueira Galvão e os autores que ela estudou a vida toda, seus preferidos, visitados e revisitados em sucessivos livros e ensaios, mas também sobre outros autores e outros temas literários e culturais. Uma breve descrição de suas quatro partes pode dar uma ideia dessa diversidade na unidade, caminhando da proximidade dos testemunhos para a abordagem de obras de terceiros, que, direta ou indiretamente, têm muito a ver com a vida e a obra da nossa homenageada. O epílogo volta a ela mais diretamente, em um tom, ao mesmo tempo, analítico e afetivo, fechando o ciclo.

Na primeira parte, predominam relatos sobre convivência e aprendizagem filial, acadêmica, profissional e de amizade. Superando o subjetivismo, no entanto, eles se abrem a outras vozes, que ampliam, por flashes sucessivos, o perfil da mulher, da mãe, da amiga, da colega, da estudiosa da literatura e da cultura, como também, da intelectual-cidadã, proporcionando uma verdadeira viagem no tempo e no espaço, geográfico, cultural e político no Brasil e fora dele.

A segunda parte se detém em leituras e releituras das obras de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, núcleo recorrente no trabalho da estudiosa de literatura, como já vimos acima. Não apenas dos grandes livros, Os Sertões e Grande Sertão: Veredas, mas de grandes-pequenos contos, como é o caso do inigualável “Meu Tio Iauaretê”.

Há aí espaço para as dificuldades e sucessos em traduções de Euclides da Cunha para o francês e de Guimarães Rosa para o italiano. Para um tradutor e estudioso alemão da obra rosiana, certos ensaios de Walnice convidam a revisitá-la constituindo elo fundamental na construção de sua fortuna crítica e se tornando, assim, parte integrante da triangulação Autor-Obra-Público, nos termos de Antonio Candido.

E há quem prefira ressaltar, mais especialmente, a capacidade da estudiosa para ler livros que provocam e interpelam os/as leitores/as, chamando-nos a penetrar mais profundamente nos “mistérios da literatura”. E quem busque decifrar, com base nessa ficção e na correspondência do escritor, um trabalho contínuo e inovador com a tradição narrativa ocidental, transculturando, como diria Ángel Rama. O minucioso trabalho editorial, seja da correspondência de estudiosas como Gilda de Mello e Sousa, seja de edições críticas das grandes obras, ilustraria, ainda, a capacidade de unir saber, pesquisa e intuição; pesquisa erudita à percepção analítica, transfigurando o texto na medida em que o desvenda por meio de uma escrita certeira.

A terceira parte se dedica a outras leituras para além desses dois clássicos, incluindo obras que não gozam da unanimidade crítica, como é o caso de Jorge Amado e a polêmica Gabriela. Nessa terceira parte, cabem também ensaios comparativos entre autores do porte de um Machado de Assis e Huysmans, relidos pela ótica de uma ficcionista. Ou entre literatura e cinema, mostrando que um conto de Rosa pode ir mais fundo que um filme sobre o mesmo tema. Por outro lado, um estudo sobre o teatro de Martins Pena capta sob a aparente leveza da comédia, a dramatização e reflexão crítica sobre o Brasil escravocrata. Mais longe e, ao mesmo tempo, bem perto, nos leva uma releitura de O Fausto, de Goethe. E, à primeira vista, fora do lugar, a poesia concreta, aparentemente pouco política, reencontraria, como “poesia do não”, algo descoberto por Walnice e exposto em As Formas do Falso: que “o contrário sempre surge do seu contrário”. Em seguida, volta-se ao engajamento ostensivo, na prosa de um Lima Barreto, que dramatizaria alteridade e exclusão.

Mas Walnice é cidade e é sertão. O livro sempre tem Euclides que plana sobre ou sob outras leituras e viagens, como é o caso de repensar o seu sertão à luz dos relatos de viagem de Spix & Martius e da sua travessia, refeita por dois pesquisadores aventureiros em pleno século 21.

A quarta parte, como já foi dito, volta a aproximar-se da pessoa indissoluvelmente ligada à figura de Walnice Nogueira Galvão, à sua história e formação, pela leitura do grande mestre de todas/os nós: Antonio Candido. Sublinhando nele a importância da escrita acadêmico-didática para iniciantes, que tentam adentrar os mistérios da leitura e análise dos textos literários. Para mostrar como, articulando detalhes linguísticos e fina interpretação, Candido realiza o que a maioria dos professores tem muita dificuldade de realizar, ou seja, levar o aluno a ler, analisar e interpretar. Este artigo organiza-se a partir da recuperação do ponto de vista da estudiosa experiente, que procura colocar-se na pele de uma leitora/iniciante, o que Walnice aprendeu muito bem com o autor de Na Sala de Aula, entre outros textos seus em que a clareza não afeta em nada a profundidade.

Quase ao final, um texto póstumo, poético, onde os livros pensam, cantam e choram, pela perda do seu leitor atento e amoroso, que deles se despede ao antecipar sua própria morte, é lembrado por quem também aproveita a oportunidade para relembrar alguns momentos inolvidáveis de um convívio prolongado embora intermitente e de conversas sempre prazerosas e inspiradoras. O que nos remete, novamente, à primeira Assistente de Antonio Candido, Walnice Nogueira Galvão, que conviveu com ele, nos seus últimos anos de vida, mais do que qualquer um ou qualquer uma de nós, em conversas, mantidas ao sabor do chá compartilhado, sobre as quais ela ainda teria muito a nos contar.

Finalmente, como retomada do muito que ecoou até aqui, neste breve resumo e como reaproximação com a pessoa e a obra de Walnice, o livro se encerra com o próprio Antonio Candido, num prefácio, retomado à guisa de Posfácio, em que Candido comenta alguns dos ensaios mais bem realizados da autora, mostrando como ela sabe mover-se com ciência e arte, pelas várias “tarefas da crítica”.

Assim, este livro estava mais do que na hora de ser produzido e publicado. Demorou, mas valeu a pena, porque não é nada pequeno. Autoras e autores, de diversas proveniências geográficas e espaços de vida e profissão, pelo Brasil e mundo afora: Alemanha, França, Itália, República Checa, Estados Unidos. Suas diferentes especialidades e o seu desempenho nelas o comprovam, pela solidez de seus trabalhos, seja em Literatura e Cultura, Teoria Literária, Filosofia, Antropologia, Direito, teoria e prática da tradução, na maior parte das vezes, abertos a uma produtiva interdisciplinaridade.

Resta-nos agradecer a todas e todos que contribuíram com estas palavras para Walnice, com destaque para uma figura marcante que aqui se fez presente, com muita lucidez e generosidade, pouco antes de nos serem roubado pela pandemia e pelo pandemônio: Alípio Freire.

Referências bibliográficas

Suplemento Pernambucano, out. 2018, ed. 152. Disponível em: https://issuu.com/suplementopernambuco/docs/pe_152_web/18
GALVÃO, Walnice Nogueira. As Formas do Falso: Um Estudo sobre a Ambiguidade no Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa. São Paulo, FFLCH-USP, 1970.

("Introdução" a Palavras para Walnice, um livro-homenagem que resgata e reverencia a trajetória pessoal e acadêmica de Walnice Nogueira Galvão)

Ligia Chiappini, geração 1968, recebeu sua primeira filha e seu diploma de Bacharel e licenciada em Letras no mesmo ano. Foi Professora titular na área de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, a convite de Antonio Candido, seu orientador de teses. Ocupou por concurso público a primeira Cátedra de Literatura e Cultura Brasileiras na Alemanha (FU-Berlin). Como pesquisadora e crítica literária, publicou vários livros e artigos no Brasil e no exterior. Recebeu os prêmios 300 onças (Brasil, 2011) e Casa de Las Américas (Cuba, 1983)