Estante

A revista New Left Review publicou, na edição de janeiro-fevereiro de 2010, um ensaio intitulado “Two revolutions”, de autoria de Perry Anderson.

Perry Anderson é professor na Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) e autor de inúmeras obras, entre as quais Passagens da Antiguidade ao Feudalismo; Linhagens do Estado Absolutista; Considerações sobre o Marxismo Ocidental; A Crise da Crise do Marxismo; As Antinomias de Antonio Gramsci; A Política Externa Norte-americana e seus Teóricos; El Nuevo Viejo Mundo, sobre a Europa, ainda não disponível em português. Sobre a política brasileira, deve-se ler o ensaio intitulado “O Brasil de Lula”, disponibilizado em português pela revista Novos Estudos, em novembro de 2011. Além de tudo, Perry Anderson é um dos principais animadores da revista New Left Review.

Uma tradução para o português do ensaio “Duas revoluções” foi publicada, em julho de 2010, na edição número 5 da revista Serrote.

A New Left Review também publicou, na edição de janeiro-fevereiro de 2015, um artigo intitulado “The party and its sucess story. A response to ‘Two revolutions’”. Essa resposta ao artigo de Perry Anderson foi escrita por Wang Chaohua, participante das manifestações na Praça da Paz Celestial em 1989 e, hoje, ensaísta residente nos Estados Unidos.

Em 2018, a Editora Boitempo reuniu os textos de Anderson e Wang num livro intitulado Duas Revoluções. Rússia e China. O livro traz, também, um prefácio de Luiz Gonzaga Beluzzo, professor da Unicamp, e um posfácio de Rosana Pinheiro-Machado, antropóloga e professora da Universidade Federal de Santa Maria. Além de “orelhas” assinadas por Luís Fernandes, militante do PCdoB e professor de Relações Internacionais da PUC-Rio.

Para quem conhece a história da República Popular da China e os debates a respeito das reformas iniciadas em 1978, o livro como um todo é interessante, mas não traz nenhuma novidade. Obviamente, os dois textos centrais não incorporam algumas novidades importantes do período Xi Jinping. Mas para quem está tomando pé no tema, o livro é útil, senão por outro motivo, pelo menos como pequena mostra da diversidade de opiniões acerca do “enigma chinês”.

Tal diversidade inclui uma polêmica central, resumida nos parágrafos iniciais e finais do texto de Perry Anderson, que começa assim: “Se o século XX foi marcado pela trajetória da Revolução Russa, mais que por qualquer outro evento singular, o século XXI será conformado pelo desfecho da Revolução Chinesa. O Estado soviético (...) desintegrou-se, após sete décadas, quase sem um tiro, tão rapidamente quanto surgira. (...) O desfecho da Revolução Chinesa oferece um impressionante contraste. (...) Onde estaria a explicação desse contraste?”.

Muitas páginas depois, Perry Anderson concluirá o seguinte: “Explicação é uma coisa, classificação outra, e avaliação outra ainda. Em termos taxonômicos, a RPC do século XXI é um novum histórico-mundial: a combinação daquilo que, segundo qualquer critério convencional, apresenta-se por ora como uma economia predominantemente capitalista, como aquilo que, segundo qualquer critério convencional, ainda é incontestavelmente um Estado comunista – cada qual o mais dinâmico já visto em seu gênero. (...) A apreciação de um processo histórico tão portentoso, ainda em seus estágios iniciais, está sujeita à falibilidade. (...) Rumo a que horizontes está se deslocando o gigantesco junco da RPC isso é algo que resiste ao cálculo, ao menos quando se utilizam os astrolábios ora conhecidos”.

Portanto, segundo Perry Anderson, é possível que o “contraste” entre as trajetórias da URSS e da China continue a existir, projetando-se no futuro. Um dos horizontes possíveis é aquele em que o tipo de sociedade existente na China não se desintegra.

Aos preços de hoje, que “avaliação” fazemos disso? Seria algo negativo? Estaríamos diante de uma sociedade parecida com aquela descrita pela série de ficção científica The Expanse, acerca do planeta Marte?

A resposta a essa questão tem implicações políticas óbvias. E ela depende, ao menos em parte, de como respondemos a seguinte questão: por acaso a combinação entre capitalismo (predominante ou não) e um “Estado comunista” não seria uma das formas que poderia assumir a tal transição socialista?

Para “explicar” a China, não é indispensável tomar partido sobre essa questão. Mas para participar ativa e conscientemente da construção dos destinos do mundo contemporâneo, não há como escapar dela. E a resposta, felizmente, não depende de autópsia.

Valter Pomar é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC