Estante

Em Brasília, 19 horasQuando assumiu a presidência da Radiobrás, no primeiro ano do governo Lula, Eugênio Bucci contou aos amigos sobre sua estupefação ao receber incontáveis visitas de políticos do PT e da base aliada tentando indicar nomes de apadrinhados para ocupar cargos na empresa. Era como se as emissoras de rádio e TV filiadas à Radiobrás, assim como as agências locais de notícias espalhadas pelo país, não tivessem outra função senão empregar gente pouco qualificada para trabalhar mal ou simplesmente engordar a folha de pagamentos como funcionários fantasmas. Com paciência de monge e jeitinho mineiro (que ele não é, mas poderia ser), Eugênio mostrava a cada visitante o organograma da empresa e perguntava, no tom mais cínico de que era capaz: “Pois não, pode escolher: onde é que o senhor gostaria de alocar seu protegido?”. A tentativa era de escancarar a desfaçatez da velha prática brasileira da troca de favores e com isso constranger seu interlocutor. “O pior é que nem todos se constrangiam”, diz Eugênio.

Esta pequena anedota não consta do livro que Bucci acaba de lançar narrando sua experiência como presidente da Radiobrás: Em Brasília, 19 Horas: a Guerra Entre a Chapa-Branca e o Direito à Informação no Primeiro Governo Lula (Record). Escrito no estilo ágil da melhor crônica jornalística, pontuado de passagens anedóticas e de divertidos perfis de seus companheiros de trabalho, Em Brasília, 19 Horas nem por isso é um livro leve. Trata-se de uma espécie de prestação de contas do autor à sociedade (e a si mesmo) sobre até onde foi possível chegar ao longo de quatro anos de dedicação ao projeto de instituir, no Brasil, uma empresa governamental encarregada de assegurar ao público o direito elementar, mas freqüentemente ignorado, de receber informação confiável e de qualidade. O autor supõe, com (falsa?) modéstia, não ter chegado muito longe. O leitor haverá de perceber que, neste ponto, e só neste, Bucci falta com a verdade.

O enxugamento do pessoal não-qualificado e o emprego de jornalistas capazes e empenhados no trabalho foi apenas a primeira e, talvez, a menos difícil tarefa do então novo presidente da Radiobrás. Menos difícil não quer dizer fácil. Ao instituir, no início de 2003, métodos de avaliação da competência em todas as áreas de funcionamento da estatal – depois do que, 224 empregados foram demitidos e 130 pediram as contas –, Bucci percebeu que estava quebrando uma espécie de tabu. Teve de enfrentar não uma oposição declarada, mas, o que é bem mais difícil...

...a resistência surda dos que se viam na iminência de perder privilégios ou favores. (...) Havia uma rede subterrânea, formada de protegidos e protetores, que era a outra face da confusão gerencial, na qual o subordinado não sabia dizer com precisão a quem respondia e o gerente não sabia listar quais eram seus subordinados. A confusão administrativa era o ambiente ideal para a manutenção daquela rede subterrânea que se mantinha na semiclandestinidade (p. 110).

Além da inércia costumeira de quem se conforma em transformar serviços públicos fundamentais em inoperantes cabides de empregos, a outra prática que Bucci e sua equipe lutaram para eliminar foi a do aparelhamento dos órgãos públicos de comunicação dirigidos pela Radiobrás. No início de sua gestão, era como se a coisa mais natural do mundo fosse utilizar a estatal como uma espécie de Departamento de Informação e Propaganda (o velho DIP da ditadura Vargas) a serviço dos interesses do governo. É claro que o jornalismo chapa-branca não foi inventado nem piorado pelos vícios e pelas incorreções do governo Lula. O caldo de cultura mais favorável à censura e ao aparelhamento das centrais de informação sempre foram os governos autoritários, avessos à natureza democrática da informação jornalística. No governo Figueiredo, por exemplo, a Radiobrás tinha a nobre função de tornar públicas as festas e recepções dadas pela primeira-dama, dona Dulce.

Para Bucci, tudo se passava como se o governo – e não a sociedade – fosse, ao mesmo tempo, o proprietário e o cliente preferencial, com direito a mandar e desmandar na estatal. O próprio decreto de fundação da Radiobrás, de maio de 1976 (em plena era Geisel, portanto), rezava que ela “exerceria suas atividades sob estreita supervisão do ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República” (p.83).

Mas não só de generais alimentou-se o fisiologismo da Radiobrás. Um episódio de censura direta exercida pelo ministro Andréa Matarazzo, da Secretaria de Comunicação Social do governo FHC, à divulgação pela Rede Pública de TV de uma entrevista concedida por João Pedro Stédile à TV Cultura de São Paulo, dá ao leitor um a idéia aproximada da magnitude da briga que a nova direção da empresa teria diante de si (p. 26). Uma briga contra aquilo que Bucci denominou “corporativismo disfarçado”, presente em governos anteriores e não erradicado pelo governo Lula.

...a administração pública se vê costurada por linhas sinuosas de confiança por delegação: gente da estrita confiança de gente da estrita confiança de gente da estrita confiança do chefe compondo uma pequena multidão de gente de muita confiança em que todo mundo desconfia de todo mundo (p.68).

Embora o tom do livro seja de análise, não de denúncia, o autor não deixa de contar as várias vezes em que se viu “sob fogo cerrado” do governo, na forma de bilhetes severos enviados a ele ou a seu superior, o ministro Gushiken, pelo então presidente nacional do PT, Ricardo Berzoini, pelo ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, e mais tarde pelo assessor especial da Secom, Bernardo Kucinski. O princípio de imparcialidade jornalística posto em prática pela Agência Radiobrás foi, com freqüência, confundido com traição, cooptação pela “direitona” ou “fogo amigo” vindo de um órgão do próprio governo. Como se a Radiobrás servisse ao governo, não ao público. No entanto, é importante observar que em nenhum momento o presidente Lula pressionou ou ameaçou demitir seu funcionário supostamente rebelde: Eugênio Bucci deixou a presidência da Radiobrás no início do segundo mandato de Lula, por iniciativa própria, considerando seu projeto implantado até onde foi possível.

A leitura de Em Brasília, 19 Horas nos faz compreender que a briga pelo direito à informação não é específica dos governos de esquerda. Não é uma plataforma da esquerda nem da direita, mas uma condição necessária da democracia. No caso dos governos de esquerda, tentar transformar as empresas públicas de comunicação em prestadoras de serviços aos governantes de plantão é, além de um desvio ético, um erro estratégico. Sem o apoio e/ou a contestação por parte de uma sociedade consciente de seus problemas e bem-informada sobre seu governo, nenhuma plataforma de esquerda conseguirá se concretizar. Pois um governo de esquerda, sobretudo em uma sociedade conservadora como a brasileira, tem de contar com a opinião pública, com eleitores esclarecidos, com movimentos sociais bem-informados. Do contrário, será obrigado a sustentar sua “governabilidade” a partir das alianças mais oportunistas e/ou mais espúrias, e com isso trair seu apoio mais confiável: a base popular.

Maria Rita Kehl é psicanalista