Estante

Em busca da memória - Comissão de fábrica, partido e sindicato no pós-guerraNada como a história bem contada para ajudar a compreender o processo de formação política da classe operária de um país. É nessa linha que se inscreve o livro de Hélio da Costa sobre o papel dos trabalhadores brasileiros no esforço de organização e de constituição de uma identidade frente às formas de exploração capitalista dos anos quarenta e cinquenta. Escrevendo de modo acessível, mas sem simplificar os argumentos, o autor percorre anos importantes da história brasileira através das greves, das comissões de fábrica e do desempenho do Partido Comunista Brasileiro. Revela uma classe operária que surpreende pela presença constante e pela maturidade nas lutas sociais.

O livro chama a atenção pelo modo crítico com que enfrenta e rompe com interpretações já existentes sobre o papel da classe operaria nesse período, em especial na sua relação com o sindicato e o PCB. A novidade da análise de Hélio da Costa está na sua busca permanente de interpretações mais complexas sobre fatos históricos já conhecidos, sem abrir mão da premissa inicial de tratar os trabalhadores como verdadeiros atores da história. Nesse sentido, ressalta o desempenho ativo da classe operária no processo de democratização brasileira no período do pós-guerra, sem esquecer os "dilemas vividos pelos trabalhadores no seu fazer-se enquanto classe, tais como: a tensão constante entre as organizações de fábrica e as direções sindicais oficiais sem se submeterem aos seus limites, a via de mão dupla que consistia a prática e o discurso do Partido Comunista Brasileiro, subordinando a prática sindical à política partidária" (pg.12).

A análise da relação entre a classe trabalhadora e o sindicato é um dos pontos altos. Às vezes a organização autônoma, à margem do sindicato, em outras a participação revigorante dentro da estrutura, sindical, o fato é que a mobilização operária revelava uma efetiva força formadora de identidade social.

No período Dutra esta questão permanece. Referindo-se a uma greve bancária, o autor atribui o sucesso da mobilização à disposição dos operários em se juntar àquelas entidades que os apoiassem na defesa dos seus interesses. Quando isso não ocorria, os trabalhadores não se intimidavam em atropelar suas entidades, não por uma política anti-sindical a priori, mas porque os sindicatos não se credenciavam (em muitos casos) como instrumentos confiáveis para enfrentar os desafios colocados naquela conjuntura (pg.61).

Hélio da Costa defende de forma convincente a organização nos locais de trabalho como fundamental para as greves que marcaram o período que se estende até a greve dos 300 mil em São Paulo em 1953. Para ele, considerar uma limitação, do ponto de vista político, o caráter espontâneo das ações grevistas pelo fato de ocorrerem fora do âmbito dos sindicatos e partidos significa não perceber que tais ações podem significar justamente um sinal de maturidade da classe.

No que diz respeito às relações do movimento operário com a legislação trabalhista, o livro enfatiza o aspecto fundamental de não considerar a CLT apenas como uma camisa de força para os sindicatos. Mostra como essa estrutura pode também ser utilizada pelos trabalhadores para conseguir, através da lei, atingir objetivos bastante diferenciados das proposições originais.

O livro de certa forma surpreende quando analisa o papel do PCB nessa conjuntura do pós-guerra. O objetivo é fazer uma releitura do seu papel nesse período. O resultado é bastante estimulante. A pesquisa elucida a contradição permanente da prática do partido no movimento operário, ora separando, ora se fundindo com ele. A análise mostra que em muitos casos o PCB pedia à sua militância para conter os trabalhadores diante do objetivo maior de consolidar a democracia, embora reconhecesse suas necessidades imediatas. No entanto, no cotidiano da ação sindical a palavra do partido teve menos força que as vozes dos trabalhadores envolvidos na luta por melhores condições salariais e de trabalho.

O livro revê também concepções correntes que atribuem aos comunistas a viabilização de um projeto sindical que o Estado fora incapaz de tornar realidade. Através de farta documentação, o autor mostra que mesmo com o prestígio dos comunistas no interior do movimento operário, a ação dos trabalhadores não pode ser considerada uma correia de transmissão do partido. Em muitos sindicatos, os comunistas não tiveram condições de barrar determinadas greves "quando o ímpeto das suas bases rumou em sentido contrário".

Essa situação muda com o PCB na ilegalidade em 1947. O autor esclarece como o partido abandona o discurso da ordem e tranquilidade pelo apelo às massas contra a onda repressiva sobre o movimento sindical. Os comunistas passam também a assumir a defesa da liberdade e autonomia sindical, criticando veementemente a estrutura sindical oficial. Nesse contexto, ganham força as organizações nos locais de trabalho, de onde surgiriam as estruturas alternativas e autônomas em relação ao Estado. O partido volta-se para a formação de associações profissionais ou centros operários paralelos ao sindicalismo oficial.

Ao final do livro o leitor tem elementos suficientes para repensar a história desse período e concordar com os argumentos do autor: a ênfase nas organizações nos locais de trabalho como um patrimônio de lutas da classe trabalhadora. A ênfase nas greves como um momento em que tanto emergiu a experiência de classe inserida na prática dos sindicatos e do PCB, como, para além do controle dessas entidades, foi possível impor demandas sociais de forma independente e autônoma

José Ricardo Ramalho é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.