Estante

O livro e também lhes ensinem a ler... - A Cruzada Nacional de Alfabetização da Nicarágua é a quarta incursão literária de Nilton Santos, educador e jornalista, dedicada a temas centro-americanos. As anteriores versaram sobre os momentos decisivos da insurreição sandinista em 1979, sobre a luta do povo e da guerrilha em El Salvador e sobre a experiência do Governo Popular de Granada até a ocupação militar norte-americana.

Já esta nova publicação deixa de lado o caráter jornalístico das anteriores para se debruçar de forma mais exaustiva sobre a experiência da Cruzada Nacional de Alfabetização, levada a efeito em 1980. Partindo de sua tese de mestrado defendia junto ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, teve o êxito de traduzi-la para uma linguagem envolvente e acessível ao público leitor.

Vencidas as resistências dos somosistas, os sandinistas e a população se depararam com um Estado desmoronado e com uma economia em grande parte desorganizada. À anarquia dos primeiros dias sucede-se um período voltado a arrumar a casa, dando início à construção de uma nova ordem social. Tratava-se então de direcionar toda a energia e disposição de luta para novas tarefas, dando-se continuidade ao processo revolucionário sobre novas bases. É neste contexto que a Cruzada se inseriu e foi definida como uma segunda revolução.

Substituindo os fuzis do período insurrecional, os brigadistas (como eram denominados os alfabetizadores) partiram com lápis e cadernos para os mais remotos pontos do país ao encontro da população a ser alfabetizada, fundamentalmente constituída de camponeses. A estas "brigadas" de jovens somaram-se professores e estudantes universitários, associações de moradores, sindicatos, associações de mulheres, formando um autêntico exército contra o analfabetismo. Educadores e educandos praticaram a troca de conhecimentos - uns oferecendo àqueles conhecimentos relativos aos códigos da escrita e da matemática, outros sobre a natureza e suas potencialidades, sobre os hábitos e as tradições arraigadas, constitutivas do vasto acervo do povo nicaragüense, até aquele momento transmitido através da linguagem oral.

O livro de Nilton tem o mérito de reunir análises, depoimentos e documentos que dão conta da dinâmica do processo, dos recursos e instrumentos acionados e aponta para todos os que militam na área da alfabetização que " não se vence o analfabetismo sem comunicação e sem mobilização popular", como bem ressalta o educador Moacir Gadotti, prefaciador do livro.

Outro aspecto importante a assinalar é que este livro sai num momento em que setores de esquerda e progressistas estão perplexos diante da derrota eleitoral da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e estão ávidos de informações que permita-lhes compreender o ocorrido. Para isto o livro buscou reunir informações que permitam situar a Nicarágua no contexto internacional, permitindo a compreensão dos efeitos internos provocados pelo cerco econômico e militar dirigido pelos Estados Unidos e que transformou Honduras num grande quartel de treinamento e base de lançamento de operações militares de sabotagem dentro do país. Os custos sociais e humanos desta guerra acabou esgotando grande parte dos recursos materiais e humanos do país, criando as condições subjetivas para a adesão de uma ampla parcela da população à candidatura de Violeta Chamorro, que ao longo da campanha buscou identificar-se com a perspectiva da paz.

E mais uma vez a revolução nicaragüense, colocada à prova, provou a sua originalidade, sendo Daniel Ortega o primeiro presidente nicaragüense a entregar o governo à oposição, depois de eleições livres. Fato como este só se tornou possível na Nicarágua construída após a revolução, na qual a Cruzada cumpriu o papel de consolidar instituições e práticas democráticas. Este fato é indicativo do quanto a experiência sandinista é inovadora no campo do socialismo, experiência que sempre questionou o regime de partido único e sempre apostou na construção de um projeto pluralista e que agora coloca em xeque aqueles que falam do pluralismo, mas não admitem a alternância de poder.

Por tudo isto vale a pena ler o e também lhes ensinem a ler..., título que toma emprestado uma declaração de Carlos Fonseca, fundador da FSLN que recupera uma experiência de Augusto Cézar Sandino (herói da resistência contra a ocupação norte-americana nos anos 20 e 30) que criou nas montanhas de Segóvia a primeira escola rural sob o duplo signo da pedagogia e da política, onde se podia "ensinar a ler e a escrever enquanto se descansava o arado ou se recostava o fuzil".

Esta publicação, lançada em 1990 para comemorar os 10 anos da Cruzada e integrar o calendário de atividades ao ano definido pela Unesco, como o Ano Internacional da Alfabetização, inaugura auspiciosamente a Ayuri Editorial, da qual esperamos novos títulos de igual mérito.

Valeska Peres Pinto é presidente da Federação Nacional dos Arquitetos, membro do DR/SP e do Conselho Editorial de T&D.