Estante

Ensaio sobre a cegueiraCostuma-se criticar a esquerda - e com certa dose de razão - por seu otimismo. Tanto no que diz respeito à natureza humana como no que manifestava de confiança numa vitória final do socialismo e da justiça. Hoje em dia se pode dizer que ninguém na esquerda era tão ingênuo assim, e que a filosofia da história baseada no marxismo é muito mais complexa, admite muito mais versões do que faz crer essa caricatural acusação. Mas, no fundo, estava latente a crença de que a história jogava (joga) a nosso favor, de que mesmo a violência, a guerra, a dureza da militância serviriam para um belo fim.

O escritor português José Saramago é conhecido por suas posições de esquerda, e não se esquiva sequer de algumas acusações de excessiva ortodoxia. Mas seus livros nada têm de otimista. A História é o palco de atrocidades sem fim; todas as ilusões, todas as religiões, parecem servir de pretexto apenas para o exercício continuado da brutalidade humana. In nomine del Dei, peça de teatro sua, publicada há poucos anos pela Companhia das Letras, mostra as lutas religiosas na Alemanha do século XVI; não se vê, na carnificina ali narrada, um lado reacionário e um lado progressista: a barbárie está em todos, a cegueira, o fanatismo, a gratuidade comanda os massacres.

Ensaio sobre a Cegueira é seu mais recente romance. Trata-se de uma fábula assustadora. O leitor não tem como não ficar impressionado com os horrores do enredo. Mas também sai da leitura desconfiado de que Saramago estava querendo impressioná-lo demais. A intenção do autor, sua insistência no hediondo e no escatológico, são visíveis demais nessa história sobre a cegueira.

Num dia qualquer, numa cidade qualquer, um homem começa a gritar de dentro do carro: "Estou cego". De repente, sem aviso, só vê uma névoa branca. É o primeiro cego. Levam-no ao médico. Este o examina, não tem explicação para o fenômeno. Logo depois, fica cego também. O mal branco se alastra pela população. O governo toma providências. Confina os cegos num hospício desativado. Soldados depositam diariamente, na entrada do hospício, caixas com alimento; com medo do contágio, não aproximam deles; e fuzilam os que se arriscam a sair da quarentena.

A primeira metade do romance conta o inferno vivido pelos cegos confinados. Dejetos se espalham pelo chão. Um menino grita pela mãe; ninguém sabe se, no pavilhão ao lado, a mãe não se desespera à procura do filho. A população aumenta a cada dia. Forma-se uma quadrilha de cegos, que com paus e barras de ferro obtém o controle dos alimentos, dos objetos de valor, das mulheres. Estupros, assassinatos, fedores, fome, cegos contra cegos. Uma mulher, entretanto, não perdera a visão. Fingira-se de cega para acompanhar o marido na quarentena. Cabe-lhe o papel de preservar um mínimo de organização e de valores humanos em meio à cegueira total.

Não conto mais o que acontece no livro, mesmo porque o autor parece mais interessado em insistir nessa idéia inicial do que em imaginar circunstâncias e desdobramentos do enredo. Procede por acumulação; seu interesse é mais o de esmagar o leitor com fatos horríveis do que o de explorar narrativamente o ponto de partida.

O romance todo se ressente do peso alegórico com que foi carregado. Estamos diante de uma alegoria excessivamente fácil: cegueira/barbárie/condição humana. Não é preciso muita inteligência para dizer: ah, sim, os cegos de que trata Saramago somos nós mesmos; num mundo brutalizado e injusto, é grande a responsabilidade dos que têm olhos quando os outros os perderam. O que, diga-se de passagem, dá ao leitor uma posição reconfortante, a de compartilhar com o autor essa suposta lucidez crítica. Se bem que se possa chamar de cegueira o que cada um bem entender.

O romance é repetitivo, tem sempre de voltar à equação alegórica estabelecida desde as primeiras páginas. O autor percebe, sem dúvida, esse risco. Para que a alegoria não parecesse ingênua demais, e para que o tom do romance continuasse fantástico, inquietante a despeito do naturalismo das situações descritas, Saramago recorre ao humor negro, à ironia de um narrador meio desentendido, que acredita e ao mesmo tempo não acredita no que conta.

Mas o artifício conduz a resultados muito infelizes. Quanto mais esperto pretende ser, mais tolo parece. O leitor encontra com incômoda freqüência gracinhas deste tipo: "embora sabendo que são raríssimas as educações perfeitas e que mesmo os mais discretos recatos têm os seus pontos débeis, há que reconhecer que os primeiros cegos trazidos a esta quarentena foram capazes, com maior ou menor consciência, de levar com dignidade a cruz da natureza eminentemente escatológica do ser humano. Mas agora (...) nenhuma imaginação, por muito fértil que fosse em comparações, imagens e metáforas, poderia descrever com propriedade o estendal de porcaria que por aqui vai". Ou então: "é dos livros, mas muito mais da experiência vivida, que quem madruga por gosto ou quem por necessidade teve de madrugar, tolera mal que outros, na sua presença, continuem a dormir à perna solta, e com dobrada razão no caso de que estamos falando, porque há uma grande diferença entre um cego que esteja a dormir e um cego a quem não serviu de nada ter aberto os olhos". Estas observações de cunho psicologístico, pela sua finura aparentemente sem cabimento perante a dimensão extraordinária do cataclismo que o relato se vem esforçando por descrever, servem unicamente para explicar por que estavam acordados tão cedo os cegos todos..." Sem contar com diversos questionamentos, falsamente sérios, de provérbios e expressões idiomáticas, como "o pior cego é aquele que não quer ver", ou "em terra de cego quem tem olho é rei" etc.

É como se esse rebuscamento humorístico fosse a defesa do próprio autor perante a gravidade de seu material. Mas o autor não quer disfarçar a violência do que conta; e assim precisa evidenciar a ironia de um modo pesado e intencional, tão pesado e intencional quanto o tom que adota quando se dedica seriamente a seu esforço alegórico.

Duplo desconforto, portanto, e duplo desajuste num romance escrito com mais raiva do que imaginação, e com uma intenção de sutileza na qual nem mesmo Saramago parece acreditar. Efeito, talvez, de quem sente agudamente o horror de um mundo que se desumaniza; desconfiando mais do que nunca das possibilidades de que esse processo se reverta, o autor como que desiste de apostar em algo além da denúncia brutal; o grande artista de O Evangelho Segundo Jesus Cristo parece ter acreditado demais na própria parábola, e no método que utilizou para disfarçar essa crença. Seu último romance é como um grito de desespero; só que Saramago acha importante gritar o mais alto que possa, por saber que está diante de um público de surdos; e ao mesmo tempo não quer parecer desesperado demais, usando da ironia para reafirmar sua confiança de que ninguém é tão surdo a ponto de não perceber sua sutileza quando a usa, com a voz em falsete. Nessa confiança, há otimismo. Mas a sutileza em falsete é mais brutal do que sutil, porque o pessimismo a governa.

Claro que não estou defendendo o velho otimismo da esquerda como solução para problemas de ordem estética. Mas acho apenas que um bom escritor só pode escrever baseado num otimismo essencial: o de que não precisa esganiçar-se para ser entendido. Uma alegoria em falsete, como a de Ensaio sobre a Cegueira, não aponta para nada no horizonte literário.

Marcelo Coelho é articulista da Folha de S. Paulo.