Estante

Existe algum limite, ainda que tênue e impreciso; entre a loucura/desespero e a lucidez absoluta nos gestos humanos na política?

Existe alguma hierarquia, ponto de tangência ou intersecção entre essas duas situações?

Este é o enigma que lzaías Almada nos propõe com o seu terceiro romance, Florão da América que, a uma leitura mais superficial, pode parecer uma obra de exorcismo.

Arthur, um professor universitário de história do Brasil que teve um irmão (militante de uma das organizações "guerrilheiras" dos anos 60-70 no Brasil) assassinado na tortura, aposenta-se. O próprio Arthur fora militante do PCB e esteve no exílio, voltando depois da Anistia de 1979. Sua vida, bem como sua carreira acadêmica parecem-lhe medíocres. O Brasil (a ação desenvolve-se durante o período final do governo Collor e governo Itamar) parece-lhe imerso na sordidez. O mundo presente é inviável do mesmo modo que a política que hoje predomina. Na verdade ele apenas consegue se identificar com o que considera uma ética e uma generosidade que em algum momento brotaram no mundo (uma idade de ouro?) e que a atual sociedade destruiu.

Ele é um Quixote apenas na leitura proposta por Arnold Hauser em sua obra Maneirismo - Crise do renascimento e origem da arte moderna. Ou seja, enquanto um personagem que viveu a mudança de uma ordem social para outra e prossegue nesse segundo momento carregando uma série de valores éticos e outras referências superestruturais da anterior e, portanto, em constante dissonância com o novo establishment, cujos novos valores e símbolos ainda não estão claramente delineados. Nesse sentido, é um solitário. Mas, Arthur provavelmente se aproxima mais dos perfis trágicos, contraditórios e obstinados de personagens de Shakespeare, ou dos romances russos do século XIX.

É este o personagem central que ao longo das 191 páginas conspira solitário e, solitário e sem cúmplices, cumpre o "justiçamento" de vários militares e civis que representaram pedras basilares da ditadura e que continuam a ocupar importantes cargos no país.

Impossível entender Madame Bovary e seu autor, Gustave Flaubert, se não nos damos conta da importância do seu capítulo VI (Parte 1) onde se lê: "Emma lera 'Paulo e Virgínia', sonhava com a cabana de bambus, com o preto Domingos, com o cão Fiel e, principalmente, com a doce amizade de algum irmãozinho, que lhe colhesse frutos maduros em árvores mais altas que campanários ou que corresse descalço pela areia, para lhe trazer um ninho."

Impossível também entender Florão da América e/ou seu autor se não atentamos para algumas passagens: "O difícil para a maioria dos seres humanos é terem eles de admitir, pelo menos uma vez na vida, a sua própria mediocridade. (...) mas o professor Arthur (não pensava dessa maneira. (...) Achava-se medíocre no significado literal do termo, isto é, estava no meio, entre, sempre a caminho de (embora) se tivesse tornado um brilhante professor de História do Brasil, um renomado historiador até. (...) Sempre que a situação exigia, oferecia-se em comezinhos holocaustos (...)" (pág. 13).

Ou ainda, "Muito já se disse e escreveu, é verdade, sobre o fio tênue e impreciso que separa a lucidez da loucura. Kafka, Dostoiévski, Whittman dedicaram-se ao assunto com paixão (...)" (pág. 59).

Marluce, uma atriz-modelo (que nos romances franceses do século XIX seria retratada na pele de uma midinette démi-mondaine ou de uma cocote), com pouco mais de 30 anos e que apoiou a candidatura Collor na eleição de 89, através do "caso" que mantém com Arthur, tem sua radiografia consumada por lzaías. É também por intermédio dela que devassamos o mundo das grandes agências de publicidade, detentoras das contas dos oligopólios e de campanhas eleitorais da direita e do "centro".

A classe média, beneficiária do "milagre brasileiro" não é poupada. Prossegue no seu papel mesquinho, com seus casamentos mal-resolvidos, canalizando sua libido para a intriga, o mexerico e, no limite, para a delação: o esteio da ordem. Assim foi. Assim é.

O livro foi escrito em Lisboa entre outubro de 1993 e fevereiro de 1994 e, ainda que o móvel inicial da ação de Arthur se refira aos anos 60 e 70, o pano de fundo é o tempo presente: é o significado da divisão da sociedade brasileira, a aliança tucanos-PFL-PTB em confronto com a Frente Brasil Popular. É esta conjuntura inserida nos contornos da História do Brasil dos últimos 30 anos.

A Nova República de Sarney foi o tema de lzaías no seu primeiro romance A Metade Arrancada de Mim (1989, 233 páginas, editora Estação Liberdade), livro que resultou de um roteiro de cinema com o qual o autor foi premiado na segunda metade dos anos 80 pela Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo (gestão Fernando Morais), jamais filmado: A História de Ruth. Nele, de certo modo, o enigma que Florão da América nos propõe, já se insinua. Só que, se o autor vê na Nova República o pântano, na conjuntura presente ele diagnostica o mangue final.

É assim que se Ruth, a "ex-guerrilheira" do seu primeiro romance, ao fazer justiça com as próprias mãos, aponta para a sua libertação (uma vida digna passaria a ser viável), o professor Arthur não. Sua "lucidez-desatino" e morte estão inscritos desde o primeiro capítulo, desde sua entrada em cena. Somente sua morte é capaz de resgatar qualquer dignidade. Mais um comezinho holocausto?

Certamente por isso, a brilhante estrutura policial sobre a qual repousa o primeiro trabalho de lzaías tenha sido abandonada neste Florão. Aqui, o único mistério é o enigma proposto que fica a critério do leitor refletir e - se for capaz - decifrar.

Enigma cada vez mais atual, se temos em vista a encruzilhada que nos coloca o segundo turno destas eleições para os governos de estados.

Aqui, além do que propõe o Florão da América1, o racionalismo cínico (no sentido filosófico) e suicida (no sentido político) dos "pragmáticos responsáveis" parece-nos propor um segundo mistério: qual o limite, ponto de tangência ou intersecção entre o "socialismo realmente existente" de outrora e a "realpolitik" que temos a tentação de abraçar, envolvidos pelas seduções do poder e ilusões sobre aparelho do Estado? - Obviamente, este último é um enigma muito pobre e medíocre frente à reflexão a que nos convida lzaías.

Alípio Freire é editor de T&D.