Estante

Entre a Mão Invisível e o Leviatã: contribuições heterodoxas à economia brasileira (www.estantevirtual.com.br), de Jefferson José da Conceição, tem tudo para tornar-se obra de referência no debate sobre caminhos para o desenvolvimento econômico com inovação e distribuição de renda no Brasil. O que o torna ainda mais interessante é o fato de abordar essa temática tanto em âmbito nacional, como regional e local.

O sugestivo título aponta o foco do debate. A mão invisível é, desde sua formulação por Adam Smith, pai da economia política nos fins do século 18, a palavra de ordem de todo o liberalismo econômico. Os neoliberais contemporâneos – grupo ideológico no qual se destaca na atualidade o ministro da Economia Paulo Guedes e do qual faz parte o estridente ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco – são incansáveis em citá-lo em seus discursos, textos e conferências, como fazem os padres e pastores em seus sermões e homílias com os versículos bíblicos. Trata-se da crença inabalável na autocorreção dos mercados, sem interferência estatal. Essa ideologia apregoa que tudo caminha pelo melhor dos mundos na economia capitalista de mercado, desde que o Estado não tenha a péssima ideia de interferir nos mercados de bens, serviços, capitais, terras e trabalho, organizá-los, regulamentá-los, apoiar sua expansão ou restringi-los.

Muito embora a megacrise financeira de 2007-2008 – a maior desde a Grande Depressão – tenha levado um de seus principais implementadores, o ex-presidente do Banco Central dos EUA, Alan Greenspan, a declarar ao Senado dos EUA ter ficado “incrédulo, em estado de choque”; e tímidos, mas inéditos, comentários críticos tenham sido emitidos até por técnicos da catedral mundial das políticas de ajuste neoliberal – o FMI –, o coro ideológico dessa igreja laica segue dogmaticamente clamando por “mais do mesmo”. Assemelham-se aos inquisidores espanhóis ao tempo da ascensão industrial e liberal da Grã-Bretanha – com a diferença de falarem em nome, não da potência decadente, mas da hegemônica, o que os torna mais destrutivos.

Leviatã – termo originado em um monstro bíblico – é o título da principal obra teórica em defesa do Estado absolutista, escrito por Thomas Hobbes no século 17. Isto é, mais de um século antes de Smith lançar sua teoria, que contestava exatamente o controle estatal das atividades econômicas, seja de forma direta, seja por meio de regulamentações detalhadas sobre as ações dos agentes econômicos privados.

O debate econômico, desde Smith, teve nessa oposição um de seus focos principais. Toda a escola clássica inglesa e francesa adotou o liberalismo econômico, tendo em David Ricardo, depois de Smith, seu paladino, no início do século 19. Em contraposição, o economista alemão Friedrich List propôs uma legislação protecionista e diversos outros estímulos estatais para industrializar a Alemanha e os EUA. Esses dois países seguiram em boa parte suas recomendações. Entretanto, no gigante norte-americano, nas últimas quatro décadas, o mainstream (corrente predominante) na teoria econômica tem sido o pensamento neoliberal, com seu ideal do Estado mínimo, difundindo-o em todo o globo. É o caso típico de quem subiu ao pódio e em seguida chutou a escada para impedir os concorrentes de alcançá-lo, como diz o economista coreano Ha-Joon Chang em seu best-seller Chutando a Escada – citado nesta obra.

Na América Latina, o pós-Segunda Guerra Mundial foi dominado em grande parte pelas teses desenvolvimentistas da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), cujo maior expoente brasileiro foi Celso Furtado. A opção foi pela participação ativa do Estado na construção de um processo industrializante que transformou muitos países latino-americanos, de economias exportadoras de matérias-primas agrícolas ou minerais, em economias com graus distintos de industrialização, evoluindo em termos urbanos e de serviços. O Brasil é um dos casos mais destacados. Lamentavelmente, o receituário neoliberal adotado desde 2016, associado a fatores internacionais, tem-nos feito regredir novamente ao estágio primário-exportador, sucateando e destruindo a indústria como setor gerador de renda e empregos.

O resultado das políticas desenvolvimentistas é inequívoco. Uma economia agrária e exportadora tornou-se uma das dez maiores economias do mundo graças à industrialização e seus efeitos relacionados: expansão dos serviços, em especial da educação, bem como a urbanização acelerada. O processo não foi harmonioso e incluiu aspectos negativos: inflação, deficits públicos e endividamento recorrentes, insuficiência quantitativa e qualitativa dos serviços públicos – apesar de sua forte expansão –, concentração de renda (contrariando as expectativas desenvolvimentistas), caos urbano-metropolitano, crises de balanço de pagamentos, crises políticas e econômicas. No entanto, o Brasil moderno, urbano, com amplo setor de serviços, ensino fundamental quase universalizado e forte presença do ensino médio, técnico e superior (inclusive pós-graduado), importante comunidade científica e destacada atividade cultural, seria impensável sem a realização daquelas estratégias.

Abandonada nas décadas perdidas de 1980 e 1990 – com a crise final da ditadura e o predomínio neoliberal (Collor e FHC) –, a perspectiva desenvolvimentista foi retomada nos doze anos de governos petistas (2003-2014), agora explicitamente acompanhada de políticas ativas de distribuição de renda. Houve, por certo, aspectos incompletos ou contraditórios, incluindo o lado ambiental, em que avanços e recuos pontuaram o período. Mas as conquistas acumuladas daquele período são incontestáveis: o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU, elevou dezenas de milhões de cidadãos a patamares maiores de renda, gerou mais de 13 milhões de empregos formais, incluiu milhões de jovens de baixa renda nas universidades, tornou-se referência reconhecida mundialmente em políticas redistributivas, alcançou maior presença internacional e soberania. É à destruição desse legado que se volta toda a política social, econômica e diplomática desde o golpe que depôs a presidenta Dilma Rousseff (2016) e, com ainda maior virulência, a partir da posse do presidente Bolsonaro (2019).

O destaque à inovação e aos aspectos e particularidades regionais são uma marca expressiva no conjunto do livro. Keynes, a Cepal, Schumpeter e seus seguidores póstumos (neoschumpeterianos) são inspiradores das propostas aqui apresentadas. O autor e seus eventuais parceiros (alguns capítulos foram escritos em coautoria) não se esquivam de tomar partido por uma intervenção estatal de molde desenvolvimentista, sustentável e distributivo. A inovação ocupa papel primordial na trajetória para o desenvolvimento necessário. E a preocupação com as especificidades do desenvolvimento regional levanta a necessidade de atentar para a enorme diversidade territorial deste país continente. Necessidade que Celso Furtado já assinalava, mas que aqui se traduz em estudos de casos e proposições bastante detalhados e criativos. Como foco na região do Grande ABC paulista, o livro inspira a criação de estratégias e diretrizes diversas conforme a realidade local e regional, sempre com caráter inovador.

Ressalte-se que inovação não se limita à tecnologia ou aos processos produtivos em sentido estrito, sem dúvida fundamentais. Ela também se aplica à implementação das políticas públicas e à combinação criativa entre políticas nacionais (federais) e locais. Um aspecto indispensável, tratado com maestria neste livro, refere-se ao envolvimento de atores locais para a criação de ambientes inovadores, como base para o desenvolvimento local: empresários e suas associações, sindicatos de trabalhadores, universidades e centros de pesquisa, o Poder Público em suas três dimensões territoriais (federal, estadual e municipal). Enfim, um processo dialogado, participativo, que carrega e explicita conflitos, acordos e consensos, na busca permanente de caminhos para o reforço e a modernização do ambiente produtivo, com a maior inclusão possível de todos os segmentos sociais nos seus benefícios.

A trajetória do autor, desde sua vasta experiência como assessor econômico do sindicalismo mais avançado do país, até sua atuação institucional como secretário municipal de Desenvolvimento em São Bernardo do Campo e diretor da agência de inovação de São Paulo, fornece-lhe materiais empíricos concretos em profusão. Sua também grande experiência como docente, professor-doutor e pesquisador, permite-lhe articular esses materiais, combinando eficazmente teoria e prática ao longo do livro.

Enfim, em tempos de destruição de conquistas sociais, de desindustrialização e reprimarização de nossa economia, de ataque às universidades públicas, à ciência e à cultura, além da vergonhosa perda de soberania nacional e do rápido agravamento dos indicadores sociais, este livro vem, na contracorrente, contribuir com exemplos, casos, propostas e reflexões pertinentes, para alimentar a formulação de novas estratégias voltadas ao desenvolvimento inclusivo, sustentável e criativo do Brasil, em âmbito nacional, regional e local.

Roberto Vital Anav é economista e professor-doutor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS)