Estante

Globalização, Democracia e TerrorismoEm 1992, depois de as­sistir a uma mesa sobre sua própria obra durante um seminário organizado pelo Ins­tituto Cajamar (SP), Eric Hobsbawm reagiu com ironia: "É estranho receber esse tipo de homenagem em vida, especialmente quando se pretende continuar produzindo por muito tempo". Aos 90 anos, o veterano historiador britâ­nico nos brinda com Globalização, Democracia e Terro­rismo, compilação em que, partindo dos marcos analíti­cos estabelecidos em seus trabalhos anteriores1, oferece perspectivas inovadoras para a compreensão dos "profundos desequilíbrios" com que o mundo se defronta no início do século 21, causados "pelas alterações mais rápidas e in­tensas jamais experimentadas pela humanidade" (p. 137).

O principal tema do livro é o alto grau de instabilidade mundial posterior ao colap­so da União Soviética. Um processo que se aprofun­dou depois que o presiden­te Bush, em 2002, renegou as regras básicas do sistema internacional estabelecidas desde o século 17, "em es­pecial o princípio de que os Estados soberanos, agindo oficialmente, respeitavam as respectivas fronteiras" (p. 56) e não se envolviam nos as­suntos internos dos demais. Para Hobsbawm, "o projeto imperial norte-americano" ul­trapassa todos os seus ante­cessores, por ser o único que postula "a afirmação públi­ca da supremacia global por meio da força militar" (p. 158), enquanto os outros "sabiam que não eram os únicos", e tinham consciência das suas vulnerabilidades (p. 153). Mais do que um resultado direto da concentração sem prece­dentes de poderes em mãos de um único Estado, as am­bições ilimitadas dos atuais líderes norte-americanos se­riam a expressão mais recen­te da regressão do "processo civilizador" que, na visão de Norbert Elias, marcou a transformação do comportamento público ocidental desde a Idade Média (p. 141).

Mas o imperialismo re­vela-se um paradoxo em um país nascido de uma revo­lução anticolonial, que este­ve na origem de organismos internacionais baseados no princípio da autodetermina­ção dos povos (a Liga das Nações e a ONU) e operou, no auge de sua capacidade hegemônica, com base em um sistema de países depen­dentes e satélites (pp. 54-76, 154). Além disso, Hobsbawm chama a atenção para o fato de que a esmagadora supe­rioridade militar jamais proporcionou a capacidade de governar o mundo (p. 159), um objetivo muito mais difícil do que no passado pela in­disposição das populações contemporâneas em aceitar a dominação estrangeira. Esse fenômeno, para o autor, se explicaria pela combinação entre, de um lado, os efei­tos de dois séculos de gradual difusão do nacionalismo (transformados, mas não eliminados, pela globalização) e, de outro, a reinvenção das identidades étnico-religiosas num mundo marcado pelo amplo acesso a artefatos bé­licos de alto poder destrutivo (pp. 86-96, 121-137).

Examinando a erosão das condições históricas de emergência da democracia, Hobs­bawm se arrisca a demonstrar "que uma das maiores vacas sagradas do discurso políti­co vulgar do Ocidente produz menos leite do que em geral se presume" (p. 13) e condena a visão de que ela possa ser concebida como um pacote institucional a ser implantado em qualquer parte do mun­do pela força do livre-merca­do (neoliberais) ou das armas (neoconservadores) (p. 137).

Essas e outras análises são construídas pelo en­cadeamento de hipóteses e argumentos, conectando fenômenos aparentemente díspares. Fiel à melhor tra­dição do materialismo his­tórico, o autor recusa-se a forçar o enquadramento da realidade em modelos preconcebidos. Num contexto marcado pelo colapso dos sistemas de referências estabelecidos, a ansiedade por novas certezas gera um terreno propício à difusão de teorias simplistas ou de versões requentadas de velhas "verdades". Hobsbawm, porém, demonstra que o ceticismo, galvanizado pela experiência de quem viveu e analisou em profundidade glórias e hor­rores do século 20, oferece uma orientação mais sólida para a árdua tarefa de fazer sentido do mundo atual com vistas à sua transformação.

Alexandre Fortes é professor de História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.