Estante

A partir de 1994 toda a imprensa brasileira foi atacada por uma febre: a dos fascículos. Desde então, são encartados em suas páginas fascículos que, ao final de pacientes semanas de coleção, resultam em enciclopédias, atlas geográficos e históricos, guias de saúde, histórias do século XX etc.

Recentemente, a febre tomou a forma de fitas de vídeo e CD’s. Em sua grande maioria são traduções de obras originalmente publicadas nos EUA ou na Inglaterra. Tendo como “âncoras” uma infinidade de imagens – “que não mentem jamais” –, estas coleções se apresentam como “obras de referência que servem às necessidades de consulta de profissionais, estudantes e toda a família”, redigidas em um “estilo ameno” para propiciar uma “leitura agradável”, apresentando seu conteúdo de “forma nítida e original”, não importando o quanto superficiais e imprecisas sejam as informações “fornecidas” por estes ”presentes exclusivos para os leitores” ou “brindes culturais”, co-patrocinados por bancos, montadoras de automóveis etc. Aliás, toda esta turma junta ofertando essa montanha de cultura, depois que foi derrubado o Muro de Berlim, esfacelada a União Soviética, decretado o “fim da história” e se instalou a globalização totalitária, parece ser algo muito intrigante. Ou não?

(Aproveitando o ensejo, data desta mesma época, a entrada no mercado brasileiro de uma avalancha de fascículos sobre história da arte, jazz, ópera, música clássica, história universal etc., em grande parte oriundos da Espanha. De modo geral, sem entrar na discussão de seu conteúdo, eles têm a particularidade de serem traduzidos pessimamente para algo que se parece com o português de Portugal e de terem uma revisão ainda mais lamentável. Enfim, uma tragédia editorial, encoberta sob o manto da abertura e globalização, a qual dificilmente se pode dizer que traga ganhos culturais. Ganhos econômicos são outra história. Wake up, Mister Weffort!)

Um destes artefatos culturais chancelados pela imprensa militante do neoliberalismo, no entanto, merece um destaque. Trata-se de História do Brasil, esforço editorial conjunto da Empresa Folha da Manhã e de Zero Hora/RBS Jornal. Em primeiro lugar, esta obra tem a característica de ser uma das raras coleções de fascículos até agora totalmente elaborada no Brasil.

Esta coleção, encartada semanalmente às centenas de milhares de exemplares na imprensa do “pensamento único”, hoje está em muitas bibliotecas particulares e de escolas públicas e será utilizada em muitos trabalhos escolares, já que um de seus objetivos declarados é o de “atender às necessidades de consulta e pesquisa de estudantes e vestibulandos”. No entanto, quando se examina seu conteúdo, fica-se espantado com o número de incorreções ali existentes. Mas o que chama muito a atenção é a maneira pela qual os partidários dos regimes “globalitários” constroem sua própria imagem e a daqueles que pensaram e atuaram na contracorrente dos endeusados “construtores da modernidade”, os “jurássicos” perdedores da “batalha da história”.

Assim, em um desses exemplos, para os anos 20 e 30, Luiz Carlos Prestes, na p. 214, é retratado como um personagem chapliniano ou então, quando cavalgando na Coluna Prestes, como uma figura grotesca, ao mesmo tempo em que Juarez Távora, ex-integrante da Coluna Prestes e futuro personagem do establishment”, é apresentado como “o príncipe dos tenentes” (p. 221). Com referência aos episódios da Revolta Comunista de novembro de 1935, num procedimento que nesta obra ocorre mais de uma vez, repete-se, com a ressalva de ausência de provas, a clássica acusação de que os revoltosos teriam assassinado oficiais legalistas enquanto estes dormiam (p. 228). Tese esta refutada por Hélio Silva, cuja obra, aliás, é citada na bibliografia de História do Brasil. No campo do factual, para citarmos alguns exemplos, já nos anos 50, afirma-se que o mesmo Prestes viveu na URSS de 1948 a 1957 e, posteriormente, de 1964 a 1978 (p. 214), para explicar sua condição de “vassalo leal” do regime soviético. Na realidade, no primeiro período, ele ficou no Brasil na clandestinidade e, no segundo, ficou fora do Brasil de 1971 a 1978.

Pulando para os anos 60 e 70, os “derrotados” são bestializados: os defensores das “reformas de base” “urravam” em sua defesa (p. 250) e, mais tarde, os guerrilheiros urbanos são apresentados como defensores de “posições ensandecidas” (p. 260). Ou ainda, no caso da morte de Carlos Marighella, embora já fosse informação disponível na época da redação dos fascículos o reconhecimento da responsabilidade da União na sua execução, ainda se dá espaço à versão da repressão de que Marighella teria resistido à prisão (p. 260).

O volume de episódios cresce à medida em que nos aproximamos da decretação do “fim da história”. Assim, o Partido dos Trabalhadores teria surgido numa mesa de um “restaurante frango-com-polenta” em São Bernardo do Campo, e, em 1994, o PT não teria tido fairplay ao perder as eleições; do mesmo modo está registrada a acusação de que Luís Inácio Lula da Silva teria interferido em favor de empresa de um amigo – mesmo com a ressalva de que nada se provou, o que, nos parâmetros brasileiros, em geral significa pouco em termos de defesa; pelo contrário, às vezes –, além de afirmar-se que ele não trabalha e vive em uma casa emprestada (p. 275). Enquanto isso, páginas adiante, os Fernandos, Collor e Henrique, são descritos como filhos de boas famílias, que se vestem com elegância, falam mais de duas línguas e sabem se portar com a fineza dos grandes estadistas (p. 288).

Além disso, o hoje “aliado” Paulo Maluf é apresentado como um dos fundadores da atual democracia, pois sem sua obstinação em querer ser eleito presidente, talvez Mário Andreazza o conseguisse e os militares talvez prosseguissem no poder. Foi também por causa desta determinação que se fundou o PFL, não por acaso o principal aliado dos tucanos (p. 277). Afora esses seus “serviços prestados ao Brasil moderno”, nada mais é dito, nem tampouco se apresentam acusações, “não comprovadas”, de atos lesivos ao patrimônio público.
Aí estão bem nítidas as imagens dos “derrotados”: a de gente sem equilíbrio e com indícios de conduta inidônea, incapaz, portanto, de estar à frente dos destinos do país. Quanto aos “vencedores”, como se diz no Don Giovanni, de Mozart, sua honestidade está estampada nos próprios olhos.

Ao final, deixando-se de lado os muitos e vultosos erros, fica-se com a impressão de que, enquanto os livros de história em geral procuram explicar porque algo foi ou é assim ou assado, História do Brasil tem por missão apresentar as razões pelas quais o Brasil tem de ser assim (neoliberal).

Dainis Karepovs é doutorando em História na FFLCH-USP