Estante

Este é um livro importante. E belo. Pelo seu tema, pela maneira como é desenvolvido, pelas revelações que faz, pelo testemunho das pessoas que foram ouvidas pela autora, pela riqueza e pela grandeza do drama que relata.

Judith Lieblich Patarra dedicou vários anos de pesquisa, de entrevistas repetidas com dezenas de pessoas, de reflexão e de estudo, para produzir um trabalho ainda sem paralelo na bibliografia brasileira sobre os longos anos da ditadura militar-civil e sobre aqueles que contra ela se levantaram.

O resultado de seus esforços chega até nós transbordante daquela empatia, daquela percepção apaixonada de seu objeto, que é a marca das grandes obras. A seriedade com que o assunto, polêmico e delicado como os ideais de uma pessoa, é abordado impressiona tanto quanto o ritmo, de tirar o fôlego, com que acompanhamos a(s) trajetória(s) de Iara e seus companheiros, da infância à adolescência e desta à idade adulta, da escola à faculdade, do movimento estudantil à luta armada.

O livro, mais que uma reportagem biográfica sobre Iara Iavelberg, é a mais completa reconstituição da vida de toda uma geração de militantes da esquerda brasileira. E Iara, por muitas razões que se tornarão evidentes para aqueles que lerem o livro, condensava em si, na sua vida pessoal e na sua militância, as contradições, as esperanças e o desencanto daqueles que, diante do fim do "pacto populista”, julgaram que tinha soado a hora da revolução.

Se o quadro do conjunto é complexo e arrebatador, não é menos fascinante o retrato de Iara, uma heroína que se vai depurando ao longo da narrativa, até atingir contornos de uma quase santa - no bom sentido da palavra. Infeliz o povo que necessita de heróis? Talvez, menos que o povo que tem heróis e não sabe, que os desconhece ou desvaloriza. Iara foi uma espécie de Leila Diniz "marie-antoinarde", uma mulher que inventou e manteve comportamentos e relacionamentos que ainda não eram costumeiros - às vezes, nem inteligíveis -, mesmo na avançada Maria Antônia, a rua em que ficava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Judith recolhe, nesse ponto, uma impressionante unanimidade de depoimentos.

Dito isto sobre o livro em seu conjunto, podemos resumir brevemente a sua estrutura, começando por mencionar o prefácio, simples e comovente de Alberto Dines.

O prólogo, ao resumir a história da vida dos avós paternos e matemos e dos pais de Iara, nos situa num processo que vem do século 19. É difícil não pensar na casualidade da História, que leva a neta de judeus europeus que procuraram fugir a perseguições sofridas involuntariamente a enfrentar, conscientemente, e até o fim, uma perseguição talvez ainda mais encarniçada, dirigida pessoalmente contra ela.

A primeira parte, "Ipiranga", mostra, na infância de Iara, o surgimento de alguns traços constantes de seu caráter: o bom humor, a firmeza, a preocupação com o sofrimento alheio, a saúde delicada, a capacidade de revoltar-se contra a injustiça.

Em "Maria Antônia", a integração de Iara no ambiente universitário mais politizado, aberto e crítico de São Paulo, o seu sucesso social, as suas vacilações e motivações em relação à militância política que se pretendia revolucionária, a sua agitada vida sentimental. Sua participação nas lutas pela preservação do caráter crítico da Universidade e contra a implantação da política da ditadura de destruir o ensino público e promover a privatização do mesmo em todos os níveis.

A radicalização da ditadura levou à do movimento estudantil, a principal força da resistência popular, estando os sindicatos e as organizações camponesas fora de combate, atingidas mais violentamente pela repressão. Iara, como tantos de nós, aderiu a uma das organizações que procuravam desencadear a luta armada e o foco guerrilheiro contra a ditadura, baseadas na experiência cubana, no exemplo e na teoria do Che e de Régis Debray, na Bolívia. A terceira parte do livro conta essa dilacerante transição, no plano político e pessoal, com realismo e dramaticidade, com riqueza de detalhes e espírito de síntese.

O caminho seguido era arriscado e por ele pagava-se um alto preço: as prisões, as torturas e mortes. Iara ligou-se apaixonadamente a Carlos Lamarca, capitão que abandonou o Exército para aderir a uma guerrilha que julgava bem mais desenvolvida do que era na realidade e que ele se empenhou incansavelmente em tentar organizar.

Na quarta parte do livro, o final, inevitável nas condições em que se travava a luta, já se delineia. Isolados, os militantes persistem numa luta cada vez mais desigual e desesperada. Por quê? Judith Patarra apresenta, daqui até o fim, as discussões, os argumentos, as diferentes motivações de cada um e do conjunto. Ponto alto do livro, os ecos e os reflexos do debate de vida ou morte chegam ao leitor com uma clareza que, no entanto, não nos permite considerar o assunto encerrado.

Ivan Lessa disse no Pasquim, que o Brasil é o país em que, de quinze em quinze anos, se esquece tudo o que aconteceu nos últimos quinze anos. Quando esta revista estiver circulando, já se terão passado 21 anos da morte de Iara, que suicidou-se para não ser presa viva, a 20 de agosto de 1971, em Salvador. Com Iara, Judith Patarra contribui decisivamente para evitar que esse fenômeno de falta de memória continue.

Francisco Salles Gonçalves (Chicão) é professor de Economia na PUC e diretor da Trama.