Estante

livro.jpgO Brasil é frequentemente lembrado, com certa naturalidade, como o país da diversidade natural, étnica e cultural. Tal afirmação pode até ter algo de correto em seus estreitos limites, embora carregue também inúmeras ambiguidades. Mas podemos ter uma certeza: o que hoje conhecemos como Brasil, obviamente, é complexo demais em sua formação histórica e social para ser abordado por qualquer tipo de jargão. Não foram poucos os pensadores brasileiros, em particular no decorrer do século 20, que se envolveram e dedicaram esforços para interpretar a realidade brasileira e suas especificidades. O livro Intérpretes do Brasil: Clássicos, Rebeldes e Renegados, organizado pelos historiadores Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco e publicado pela Boitempo, retoma de maneira expressiva parte importante desses pensadores.

A lista de intelectuais selecionados como objeto de reflexão vai desde Gilberto Freyre e Câmara Cascudo até Astrojildo Pereira e Maurício Tragtenberg. A cada um deles, um ensaio específico. A proposta parece ser, no geral, organizar um quadro de apresentação e balanço críticos de interpretações já elaboradas sobre o Brasil. Para cumprir tarefa tão árdua, muitas mãos: cada ensaio é assinado por um ou mais autores. Não deixa de ser sugestivo que o livro seja organizado dessa maneira. Se, por um lado, coloca-se em relevo a contribuição intelectual e a intervenção prática desses indivíduos instigados pelo desafio de interpretar e transformar a sociedade brasileira, por outro, demonstra-se que isso não é algo a ser realizado por sujeitos isolados.

Os autores responsáveis pelos ensaios têm um perfil semelhante ao dos intelectuais analisados, de certa maneira. Entre nomes mais conhecidos e outros menos, há acadêmicos, dirigentes partidários e militantes. Entre os segundos, porém, há também intelectuais pouco aceitos pela academia, como bem exposto pelos organizadores na apresentação do livro. É interessante notar como esse fato pode indicar uma variação histórica da noção do que é ser um intelectual. Essa é uma questão presente ao longo de toda a obra, já desde o subtítulo, sem que se faça uma separação estanque: clássicos, rebeldes e renegados.

Mas o que significa, afinal, “interpretar o Brasil”? Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o verbo “interpretar” significa “[...] 2. Explicar, explanar ou aclarar o sentido de (palavra, texto, lei etc.) [...]”.  “Interpretar o Brasil” pode ser entendido, pois, como pensar o sentido dessa formação histórica e social, sendo difícil aqui não remeter a Caio Prado Jr., um dos autores tratados na obra. Entretanto, em Intérpretes do Brasil, esse significado ganha contornos próprios: para além de um aspecto teórico, interpretar a realidade social brasileira é pensá-la para nela intervir e transformá-la. Partindo dessa perspectiva, cada ensaio lida com o contexto histórico, a trajetória pessoal, as matrizes teóricas e as atividades profissionais e políticas dos intelectuais em questão.

O livro tem o mérito de oferecer um panorama bastante amplo e não superficial do pensamento social – e radical – brasileiro do século 20 e dos dilemas que o conformaram. Podemos citar alguns aspectos para ilustrar minimamente esse panorama. A começar pelos pensadores de origem anarquista que posteriormente adotam o marxismo como referência, vivenciando os impactos da Revolução Russa de 1917 e envolvendo-se na organização do PCB em 1922, como Astrojildo Pereira e Octávio Brandão. Estes e outros viveram também os quinze anos sob o governo de Getúlio Vargas e tiveram de lidar com toda a complexidade e as contradições daquele período. Além disso, há aqueles que, principalmente num tempo de certa democratização de 1945 a 1964 – embora limitada ou, como diria Carlos Marighella, “racionada” –, engajaram-se nos debates e projetos acerca do desenvolvimento nacional brasileiro, da democracia, da questão agrária, da industrialização, do capitalismo dependente etc., como Celso Furtado, Ignácio Rangel e mesmo Heitor Ferreira Lima.

Outro tema muito presente é sobre a “revolução brasileira”, marcado pelas contribuições de Caio Prado Jr., Jacob Gorender e Nelson Werneck Sodré. A ideia de socialismo é presença crucial. Por fim, em conjunto com a militância intelectual já reconhecida das décadas anteriores, a geração mais recente no livro é aquela que teve de enfrentar ainda jovem o terror do golpe de 1964 e da ditadura civil-militar que então se instalou no Brasil. É o caso do educador Paulo Freire, do geógrafo Milton Santos e dos sociólogos Florestan Fernandes e Maurício Tragtenberg, que também viveram e participaram, de modos diferentes, do período de transição democrática nos anos 1980 – transição ainda incompleta, apesar de todas as lutas e conquistas populares, devido ao caráter conservador imposto pelas classes dominantes.

Assim, parece evidente o porquê de “rebeldes”, no subtítulo do livro, como uma caracterização desses autores, ou ao menos da maior parte deles. Quem diria que, de certa maneira, intelectuais como Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro e Antonio Candido não podem ser considerados como tais? Além de “rebeldes”, simultaneamente são “clássicos”. E também poderíamos nos perguntar: junto a tais intelectuais indiscutivelmente reconhecidos, Leôncio Basbaum, Edgard Carone e Mário Pedrosa não são clássicos do pensamento brasileiro? Os organizadores da obra demonstram essa consciência e dizem: “(...) agregam-se aqui alguns autores considerados ‘clássicos’ pelo establishment acadêmico. Em verdade, todos os que figuram nesta obra poderiam, de certa forma, ser classificados assim”.

Restam algumas considerações sobre aqueles que são caracterizados, de modo provocativo, como “renegados”. Com essa caracterização, portadora de uma dose de ironia, a obra inclui uma crítica a um formalismo acadêmico que ignora ou menospreza, por motivações distintas, as contribuições de intelectuais da envergadura de Rui Facó, Everardo Dias, Edgard Carone, Nelson Werneck Sodré, José Honório Rodrigues e Ruy Mauro Marini. Trazer o pensamento desses autores para o centro do debate, ao lado daqueles tradicionalmente discutidos, é uma das grandes contribuições do livro no atual contexto. Sobre as ausências inevitáveis, não se pode discordar dos organizadores quando dizem: “(...) sempre faltarão nomes que, de uma forma ou de outra, deram contribuições para se conhecer e ‘mudar’ o Brasil”. Entretanto, ressalte-se criticamente a ausência de mulheres entre os selecionados para análise na obra. Muitas pensadoras brasileiras também se dedicaram a “interpretar o Brasil” e mereceriam ser contempladas – como Marilena Chaui, Heleieth Saffioti e Emília Viotti da Costa.

De todo modo, interpretar o Brasil não é uma tarefa acabada e nunca poderá ser. Intérpretes do Brasil é um livro que não tem um meio ou um fim obrigatório; o leitor pode direcionar-se aos ensaios que mais o interessem, na ordem que preferir. Assim, a obra pode ser vista como ponto de partida para esta que segue sendo uma responsabilidade para toda e todo militante que tem em vista a transformação revolucionária da sociedade brasileira, um projeto socialista, um mundo com igualdade, liberdade e respeito ao ser humano: interpretar e conhecer a realidade para melhor nela intervir e poder transformá-la. É tarefa de hoje dar continuidade aos esforços de tantos pensadores e pensadoras brasileiros para compreender e dar respostas aos enigmas disso que chamamos de Brasil – sobretudo no atual momento de tantos impasses e desafios enfrentados pelos setores de esquerda e pelas classes trabalhadoras em geral. A publicação de Intérpretes do Brasil, portanto, vem num momento oportuno e atendendo a uma necessidade política, para além da intelectual.

João Luís Lemos é estudante de graduação em História na USP