Estante

Assunto urgente, polêmico, que fere suscetibilidades, desperta vaidades e suspeiA judicialização da política é um fenômeno que pode ser percebido das mais diversas formas. Quem frequenta Brasília sabe que – atualmente – o principal ponto de manifestações políticas da sociedade civil é o espaço do Supremo Tribunal Federal (STF). Se antes faixas e coros de reivindicações tinham o Congresso Nacional por foco e direção, agora as baterias se voltam para a corte suprema da Justiça. Os poucos passos que separam os Poderes, e a marcha em direção a um deles – com o consequente distanciamento do outro –, revelam plasticamente um movimento sistêmico e estrutural de imensa importância: a cada vez maior percepção do Judiciário como locus de elaboração e decisão sobre políticas públicas.

Essa ocupação paulatina – e não sem reações – do Judiciário sobre o espaço do Legislativo, e também do Executivo, merece atenção. Trata-se de um anúncio de crise institucional ou mera acomodação consciente e estratégica de forças interessadas na alteração da arena da discussão política? Revela uma fraqueza sistêmica de um Legislativo heterogêneo demais para compor maiorias e tomar decisões concretas ou a astúcia de um poder na busca de uma homologação supostamente imparcial de um corpo construído ao largo do processo eleitoral?

Essas questões são complexas e abordadas de forma inteligente e profunda na obra Judicialização da Política, (à venda pelo site www.livrariared.com.br) organizada pelo professor Luiz Moreira, que reúne artigos de diversos pensadores do tema. As análises, sob os mais diversos prismas, em geral partem da constatação de que o fenômeno tem origem na estrutura americana de organização dos Poderes, na qual a possibilidade do judicial review é parte do modelo político/jurídico, e ganha força com a criação (ou o fortalecimento) das cortes constitucionais europeias após a Segunda Guerra Mundial, instituídas para garantir a prevalência de direitos fundamentais inscritos nas Cartas Magnas diante de eventuais excessos legislativos. A partir daí, são expostas as características da judicialização em países como Suécia, Canadá, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Israel, Turquia, Rússia, entre muitos outros, citados como exemplos nos diversos textos que compõem o livro.

A experiência estrangeira não dista de nossa realidade nacional. A incorporação do papel de agente político pelo Judiciário é sentida há muito no Brasil, seja pelos temas que pautam as decisões do STF, como aborto, casamento homoafetivo, demarcação de terras indígenas, pesquisas com células-tronco, execução penal nos crimes hediondos, greve do funcionalismo público, seja pela atuação proativa dos órgãos administrativos do Judiciário, como o Conselho Nacional de Justiça, com a implementação de projetos amplos de política nacional, o mutirão carcerário, o Cadastro Nacional de Adoção, programas de registro civil, entre outros. Ainda que por aqui não se tenha chegado ao extremo de o corpo judicial definir o modelo político válido, como ocorreu na África do Sul ou nas Ilhas Fiji – como revela Hirschil em seu estudo que compõe a obra coletiva –, são inúmeras as decisões de cunho político (ainda que os contornos desse termo sejam difíceis de precisar) proferidas pelos tribunais brasileiros.

O próprio STF, consciente da repercussão dos temas ali em debate, e talvez para suprir o déficit democrático na tomada de decisões de grande extensão social, tem defendido a produção de normas e implementado mecanismos para conferir alguma participação da sociedade civil nas discussões ali travadas, de forma similar à ocorrida em outros países, como demonstram os vários textos organizados por Moreira. A ampliação dos instrumentos para o controle concentrado de constitucionalidade e de seus legitimados, a adoção do amicus curiae e das audiências públicas revelam tentativas de abertura do tribunal ante a evidente politização dos temas ali em pauta. Refletir se tal abertura é suficiente, ou se tais questões deveriam mesmo frequentar as barras da Justiça, é o objeto do estudo (e da provocação) dos autores.

De outro lado, também não é estranha, no Brasil, a tensão decorrente da incorporação de atribuições políticas pela Justiça. As análises que Hirschil e Ferejohn fazem em seus textos dos conflitos entre Legislativo e Judiciário parecem familiares. Na Ação Penal 470 (chamada “Mensalão”), com a polêmica sobre a competência para determinar a perda de mandato dos parlamentares condenados e na recente discussão sobre os royalties do petróleo, o embate ficou evidente, com ações e reações institucionais de explícita disputa de forças.

Enfim, a Judicialização da Política é um livro sobre assunto urgente, polêmico, que fere suscetibilidades, desperta vaidades e suspeitas. Um tema difícil, como é natural a todos aqueles que têm por mote interpretar movimentos contemporâneos, sem tempo de aguardar o distanciamento histórico diante da premência de possíveis crises. Mas, apesar de todas as perplexidades que o fenômeno estudado suscita, é possível extrair um consolo da obra ora resenhada: não estamos sozinhos. Nas palavras de Vallender, trata-se de um “fenômeno mundial”. A angústia sobre as causas e consequências da judicialização da política é a mesma em diferentes países, e só a conjugação de esforços para a interpretação de tais movimentos possibilitará a antecipação de crises e o desenvolvimento de instrumentos para garantir o equilíbrio e a estabilidade de um sistema democrático de Direito.

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado, professor de Direito Penal da USP, ocupou o cargo de secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça e coordenou a obra Reforma do Judiciário, Editora Saraiva, 2005