Retomo, a propósito de Literatura e Resistência, livro de ensaios do prof. Alfredo Bosi, certo passo da Normativa de Crítica, manuscrito inédito de Mário de Andrade conservado em seu arquivo, no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Nesse extenso e instigante esquema destinado a orientar dois jovens que se propuseram, nos anos de 1940, a assinar crítica jornalística profissional, Mário problematiza, sob diversos ângulos, as escolhas do intelectual. No tópico “Da crítica”, o escritor deixa transparecer o seu ideal: “é indiscutível que se o crítico pretende a Justiça, a crítica é uma fé, se apenas a justiça, a crítica é uma Esperança; se um ato de Charitas, a crítica é apenas uma Caridade, isto é, um ato de Amor. Confesso que o terceiro caso me parece mais humano, mais fecundo”.
Salvo engano, a primeira dessas alternativas sugere a noção de estreito “dogmatismo” da atitude crítica, a segunda permite supor um périplo apenas “meditativo” e a última vertente exprime o caráter “utópico” da ação intelectual, pois a “Caridade”, suponho, não deva ser puramente contemplativa, isto é, calcada em uma “Esperança” que se nutre de possibilidades. Na “utopia”, como se sabe, mora o germe da transformação; habita o desejo de participação no próprio tempo para o melhoramento da humanidade, portanto, um “ato de Amor” que deverá ser sempre crítico e fecundo. Talvez não seja difícil detectar no horizonte das perspectivas do ensaísta Alfredo Bosi uma postura “empenhada”, o que o situaria na terceira proposição pensada por Mário de Andrade. Ela se impõe ostensiva no retrato do professor que, no topo da carreira universitária, nos difíceis anos 70, integra-se a uma comunidade operária, no subúrbio de Osasco, como relata o belo ensaio de contorno memorialístico A escrita e os excluídos, apresentado no Fórum Social Mundial de 2002: “Eu sentia que fazer teses era bom e necessário, mas certamente não bastava para um professor que pretendesse ser também cidadão...”
A percepção de um engajamento não epidérmico brota nas frestas do discurso ensaístico; afinal, a autofiguração desejada assume a vivência do “intelectual de esquerda”, vivência “democrática” e “progressista”. Mas, mesmo aqui, diante de tantas e tão firmes declarações, o resenhista não correrá o risco de ingenuamente rotular uma expressão intelectual tão rica? O aviso é do professor de Literatura Brasileira da USP, que desvela a armadilha da “fácil tentação de tudo reduzir ao critério de nossa ideologia”.
Ao percorrer os quinze ensaios que compõem o livro – textos que vão desde 1973, “Canudos não se rendeu”, prefácio a Os Sertões, até “Poesia versus racismo” de abril de 2002, além dos inéditos não datados –, observa-se, inicialmente, uma grande coerência ideológica perpassando o discurso interpretativo, ao lado de uma não menos notável autoconsciência do lugar histórico. A chave de leitura é oferecida pelo próprio ensaísta que, no trecho a seguir, extraído de Narrativa e resistência, se refere à ficção, mas, se tomasse o memorialismo e a poesia, que também estuda neste livro, não renegaria o arranjo: “[...] as motivações primeiras que me levaram (e ainda me levam) a tomar sempre um grande texto narrativo como uma formação simbólica grávida de sentimentos e valores de resistência”.
Os estudos de Literatura e Resistência formulam-se no âmbito da relação dialética entre literatura e sociedade, cuidando, como ensina Antonio Candido, em negar os precários sociologismos, para perceber no texto literário “as mediações e os processos de criação individual e tradição cultural”. Nessa direção, apreender as formas de “resistência” na literatura é mergulhar nas articulações do texto. A resistência, em suma, nem sempre tem voz; insinua-se, matreira, nos desvãos da escritura.
Resistir é o que fazem os insofridos descendentes de negros Cruz e Souza e Lima Barreto, este e aquele, lançando protestos “contra os argumentos da ideologia dominante”. Resistem, cada qual a seu modo, Graciliano Ramos das Memórias do Cárcere, o injustiçado Pe. Vieira, interpelado pela Inquisição, movido pelo “sonho de um reino de justiça que se realize cá na terra”. Resiste o nostálgico mundo marginal de João Antonio. O resistir está ainda na engenhosa ação “contra-ideológica” de Basílio da Gama, no Uraguai, que faz sobreviver na “glorificação do vencedor [...] o aguilhão da consciência”. Há sempre meios engenhosos para se resistir às convenções, aos preconceitos e às formas de apagamento cultural.
Literatura e Resistência deve, enfim, ser colocado também entre os mecanismos de “resistência” cultural. Coerente, finamente reflexivo (dobrando-se sem medo sobre as artimanhas do próprio ato crítico) e sobretudo polêmico. Note-se, por exemplo, como o ensaísmo de Alfredo Bosi peleja (quixotescamente!) contra as mazelas de parte substancial da literatura brasileira contemporânea, viciada pelo mercado, erigida sobre escombros paródicos e expondo-se como uma réplica da realidade crua, sem a necessária mediação da arte que a humaniza em seu alcance e domina o caos. Vejam-se ainda as suas considerações sobre os rasteiros resultados obtidos por certa vertente crítica hoje chamada de Estudos Culturais.
Marcos Antonio de Moraes é professor de literatura brasileira da FFLCH-USP