Estante

A insegura busca das nossas sociedades por formas de gestão mais adequadas ganha com este número de Lua Nova um conjunto de artigos interessantes. A temática é oportuna já que, neste fim de século, se a tecnologia anda bem, com inovações impressionantes em todas áreas técnicas, nossa capacidade de nos governar de maneira civilizada avança a passos incomparavelmente mais lentos, se é que avança.

O artigo de Petrônio Portella Filho, sobre as tentativas de ajuste econômico na América Latina, é neste sentido significativo e constata que, apesar da democratização e dos amplos esforços de reorganização econômica, a miséria no nosso subcontinente continua avançando firme: passamos de 136 milhões de indigentes, em 1980, para 196 milhões, em 1990, ao mesmo tempo que os 5% mais ricos melhoravam a sua situação.

A pressão do FMI e do Banco Mundial foi, portanto, inadequada à realidade que os países enfrentam. Os devedores latino-americanos foram encorajados a tentar realizar simultaneamente a estabilização das políticas econômicas, a liberalização generalizada e o pagamento das dívidas externas acumuladas, e isto enfrentando dramáticas condições sociais acumuladas durante décadas. A receita simplesmente não funcionou, e Petrônio mostra como esta falência se processou durante os anos 80, e como propostas mais flexíveis que levassem em conta a situação social poderiam funcionar.

Em linha parecida mas centrada sobre o caso brasileiro, Basílio Salum Júnior estuda a transição política e a crise do Estado. Pessoalmente o conceito de transição já não me entusiasma, porque hoje quase tudo parece estar em transição. Mas o estudo é muito bem documentado, e numa área em que muito já foi escrito o autor desenvolve de forma competente esta nossa impressionante capacidade de mudar para não mudar. No cerne do raciocínio está "o descompasso entre a complexidade crescente da sociedade, e os mecanismos de representação/cooptação política". Frente a uma realidade que nos obriga a contemplar ao mesmo tempo abertura para o exterior, desregulamentação e democratização da sociedade, encontramos apenas propostas parciais.

A ineficiência das políticas de reajuste vai se refletir também na evolução das políticas econômicas e sociais de dois países que freqüentemente são apresentados como "sucessos": México e Chile. O caso do Chile é estudado por Pilar Vergara, que tenta examinar "qual a capacidade que o modelo econômico de livre mercado e a política social atualmente vigente demonstraram para conciliar as metas de crescimento econômico e graus de igualdade social". O caso Chile é interessante na medida em que criou um modelo bastante "puro", de um liberalismo que atingiu inclusive as políticas sociais nas quais o mercado, notoriamente funciona mal. Os diversos programas sociais são estudados em detalhe: o resultado prático é que o sistema dual adotado, de mecanismos privados para a renda alta e média, e de programas setoriais burocráticos para as áreas de pobreza crítica, não funcionou, continuando a concentração de renda. Mesmo com as tentativas mais recentes de Aylwin, "o funcionamento de um modelo dual de bem-estar desta natureza produz uma contínua drenagem de recursos estatais para as entidades privadas". Em outros termos, o casamento autoritário entre eficiência econômica e humanização do desenvolvimento não produz os resultados esperados.

O estudo sobre o México é interessante, na medida em que uma experiência próxima da chilena foi tentada, mas com menos autoritarismo e mais populismo corporativista, levando à constituição de 150 mil comitês comunitários. Estes, teoricamente, iriam gerir os programas sociais, mas na prática constituem uma gigantesca máquina de enquadramento dos movimentos comunitários pelo governo central, num processo em que os dedos são mais longos, atingindo todas as comunidades, mas a mão que os maneja segue uma só, a do nível central de governo. Asa Cristina Laurell conclui que "se não se introduzirem reformas institucionais significativas no modelo dual de bem-estar social definido e cristalizado durante a experiência neoliberal, dificilmente haverá progressos substanciais na redução da pobreza e das desigualdades econômicas e sociais".

O estudo de Amélia Cohn, sobre o caso da saúde em São Paulo, permite ver de forma mais direta esta relação entre as políticas teoricamente destinadas a reduzir a pobreza e o que Asa Cristina chama de "cidadania social". Porque, em última instância, trata-se nestas reformas todas, tanto as de ajuste econômico do Banco Mundial, quanto as políticas neoliberais, de tentar de certa forma fazer o bem público sem o público, de ter o usuário como cliente mas nunca conceder-lhe cidadania; de exercer um segmento do poder para beneficiar os pobres, mas nunca de lhes conferir o poder de definir e gerir os benefícios. Trata-se, nas palavras de Amélia, "de um processo regido pela lógica da recentralização e da racionalidade econômica, em detrimento da lógica política. Esta, quando democrática, compreenderia a busca da racionalidade e da eficiência como parte de um processo mais amplo, no qual o direito à saúde seria concebido como diretamente vinculado à cidadania". A análise da experiência da gestão da prefeita Luiza Erundina permite mostrar justamente o potencial de uma dinâmica efetivamente participativa.

Dois artigos, de Philippe Van Parijs e de Gilson Schwarz, enfocam o problema pela perspectiva dos programas de renda mínima, ou, na terminologia de Van Parijs, de um "capitalismo de renda básica". Os dois estudos se equilibram, na medida em que Van Parijs enfoca o problema de um ponto de vista muito teórico em termos de implicações para o modo de produção capitalista, Gilson traz o debate para a terra, para uma "economia que se volte ao exame dos bens públicos".

Um terceiro enfoque é o de José Augusto Lindgren, que traz um balanço conciso e bem organizado da Conferência Mundial de Viena, em 1993, sobre direitos humanos Lindgren parte de um balanço sóbrio da herança capitalista; "o agravamento da situação econômica do Terceiro Mundo, as pressões emigratórias dos países periféricos, o crescimento do fundamentalismo islâmico, o desemprego nas sociedades desenvolvidas, a exacerbação do nacionalismo nas ex-repúblicas iugoslavas e no Leste Europeu em geral, o recrudescimento do racismo e da xenofobia na Europa Ocidental". As dificuldades da aprovação do Programa de Ação Viena mostram a que ponto a busca do direito ao desenvolvimento e os direitos humanos em geral se debatem em intrincados meandros de interesses nacionais e internacionais.

Este número de Lua Nova conta ainda com dois artigos que enfocam a dimensão jurídica do problema, o de Samuel Freeman sobre democracia e controle jurídico da constitucionalidade, e de Ronaldo Macedo sobre o decisionismo jurídico. Finalmente, o oportuno artigo de Renan Springer de Freitas coloca o problema metodológico que preocupa um pouco a todos: a nova realidade que enfrentamos nos obriga a repensarmos conceitos marxistas, enquanto a coerência mais ampla com o sistema teórico herdado nos obriga a cuidados.

Ladislau Dowbor é cientista político.