Estante

Luiz Carlos Prestes: um Comunista BrasileiroNo Brasil são raros os personagens como Luiz Carlos Prestes (1898-1990). Foi daqueles que defenderam suas ideias ao longo da vida sem abrir mão de nada, mesmo que ao custo de sua liberdade e de suas condições de vida. No entanto, mesmo naquelas elementares e aparentes formas óbvias de reconhecimento desse compromisso de Prestes em sua luta na defesa de seu país, como a inserção de seu nome no “Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria”, se oculta o seu nome atrás de primários argumentos que rescendem à velha e aparentemente finda Guerra Fria. E o exemplo dessa vida, que poderia ajudar a melhor moldar o chamado “caráter brasileiro”, é ignorado, não é apresentado às novas gerações, que têm seu futuro ameaçado por “reorganizações do ensino” e até assaltos à merenda.

Felizmente, ao menos, os interessados na vida e nas lutas de Luiz Carlos Prestes hoje possuem um significativo número de obras a esse respeito. Embora desde os anos 1920 Prestes já viesse sendo objeto de obras de caráter “biográfico”, que, na verdade, eram textos circunstanciais e voltados, pró ou contra, às posições de Prestes – aqui incluída a tocante biografia romanceada de Jorge Amado (O Cavaleiro da Esperança: Vida de Luís Carlos Prestes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, cuja primeira edição, publicada no exílio do autor, é de 1942) –, foi somente algum tempo após sua morte que o comandante da Coluna Prestes e secretário-geral do Partido Comunista do Brasil (PCB) foi objeto de obras mais rigorosas. Há algum tempo foi traduzida uma biografia originalmente publicada na Rússia por um especialista em assuntos latino-americanos e brasileiros do Instituto da América Latina da Academia de Ciências russa (Boris I. Koval, Heroísmo Trágico do Século XX: o Destino de Luiz Carlos Prestes. São Paulo: Alfa-Omega, 2007). Poucos anos depois foi a vez de um historiador brasileiro da Universidade Federal Fluminense ocupar-se com Prestes (Daniel Aarão Reis, Luís Carlos Prestes: um Revolucionário entre Dois Mundos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014), obra esta já apresentada na resenha "Primeiro trabalho de fôlego sobre o Cavaleiro da Esperança", aos leitores de Teoria e Debate. Agora se publica nova biografia de Prestes", desta feita de autoria da historiadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e, além disso, filha do biografado, Anita Leocadia Prestes (Luiz Carlos Prestes: um Comunista Brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2015).

A biografia de Anita Leocadia Prestes inicia-se com o reconhecimento de que o seu livro “não é nem pretende ser a biografia definitiva de Luiz Carlos Prestes”. Em que pese ser esta uma frase formal daquelas que usualmente encontramos em mais de um lugar, pois o autor sabe ser sua obra dotada de qualidades que a fazem ser um sólido texto, ela é verdadeira. Luiz Carlos Prestes: um Comunista Brasileiro é apreciado com muito mais proveito se for acompanhado da leitura do trabalho de Reis. Isso se dá em razão, sobretudo, de algo que a autora, também no início da sua obra, se propõe a fazer, mas não consegue: superar a “ligação afetiva com aquele que era, ao mesmo tempo, o principal ator e a fonte fundamental de seu relato”. Isso acontece especialmente quando são abordados temas familiares e, principalmente, em alguns episódios ocorridos entre os anos 1970 e o final da existência de Luiz Carlos Prestes, nos quais a autora esteve pessoalmente envolvida como militante comunista, ao lado do pai.

Além disso, existem ausências, até justificáveis, embora discutíveis, motivadas por questões de segurança. Refiro-me aqui em especial à vida de Prestes em Moscou, compartilhada pela autora, da qual ficamos pouco sabendo a respeito do que o velho herói tratava com os seus camaradas soviéticos e de outros partidos comunistas, ao menos sobre questões brasileiras. A biógrafa preferiu centrar-se nas polêmicas intracomunistas brasileiras. Outras ausências são curiosas, como a omissão da informação de que, durante o período em que esteve preso, nos anos 1938-1939, ocorria uma grave cisão no PCB, que o varreu de alto a baixo. Talvez isso se explique pelo fato de que Prestes, na correspondência que conseguiu enviar clandestinamente de seu cárcere, tenha manifestado opiniões que praticamente reproduziam as da ala de Herminio Sacchetta, que, como sabe, mais tarde acabou aderindo ao trotskismo, criticando o grupo capitaneado por Lauro Reginaldo da Rocha, o Bangu, o qual acabou vencedor na disputa interna.

Essas discussões não devem, por outro lado, obscurecer importantes questões tratadas pela autora de forma acurada e brilhante. Refiro-me aqui à maneira detalhada e cristalina com que ela acompanha a trajetória da Coluna Prestes e a importância dela para o Brasil na luta contra a oligarquia “café com leite”, e que alçou Prestes à condição de mito vivo. Uma pequena curiosidade que é impossível deixar de mencionar aqui. É impossível deixar de perceber como hábitos constatados hoje têm raízes históricas. Anita Leocadia Prestes nos conta como o dinheiro de uma subscrição supostamente levantada em favor da Coluna Prestes pelo O Globo (sim, ele mesmo!) não chegou ao seu destino (p. 103).

Um segundo ponto de destaque é o dos exílios boliviano, argentino e uruguaio de Prestes depois da Coluna Prestes ter ensarilhado suas armas. Indo das difíceis condições de vida dos 620 remanescentes e do empenho de Prestes para garantir-lhes condições de sobrevivência até a adesão de seu comandante ao comunismo, tudo isso sempre permeado por seu inflexível caráter. Isso, por outro lado, o levou ao início de uma série de situações em que se viu isolado ou cercado por uma “proteção” que o impediu de buscar contato com as massas, coisa que sempre aspirara. Seja a adesão ao comunismo que o isolou dos seus companheiros de Coluna Prestes, os chamados “tenentes”, na virada dos anos 1920-1930; seja em 1935, quando o então secretário do PCB, Antônio Maciel Bonfim, o Miranda, dificultou seu acesso à estrutura partidária do PCB; ou, então, seja de fins dos anos 1940 até meados da década de 1950, quando o secretário de organização Diógenes de Arruda Câmara repetiu Miranda e o isolou do partido. É claro que aqui cabe a pergunta que se deixa de fazer no livro sobre como a cultura do chamado stalinismo fez com que Prestes acabasse aceitando quase passivamente esse “emparedamento”.

Outra questão importante tratada pela autora é a do processo de reformismo do PCB, iniciado com sua ligação atávica com a revolução democrático-burguesa, por etapas, vinda desde o final dos anos 1920 e que sempre elidiu a questão da conquista do poder pela classe trabalhadora, e a crença na existência de uma suposta “burguesia nacional progressista”, que levaram o PCB a uma série de graves equívocos políticos. Anita Leocadia Prestes acompanha meticulosamente essa trajetória, com suas idas e vindas, em especial a partir do final dos anos 1940 até, especialmente, os anos 1970, fazendo com que Prestes saísse do partido em 1980 e o PCB acabasse açambarcado pelos chamados reformistas, a quem a autora, retomando expressão de Lênin, designa como “pântano”. Ao acompanhar pormenorizadamente essa trajetória, o leitor tem uma clara compreensão de como o Partido Comunista rolou “cuesta abajo” e acabou transformando-se no PPS, o qual se sabe onde acabou. No entanto, em muitos momentos ficamos sem saber qual o verdadeiro papel de Prestes em vários episódios e “viradas” política. Faltou, enfim, a este exame um acerto de contas, outra vez, com o stalinismo, o qual, fundado na teoria do “socialismo em um só país”, sempre colocou a URSS acima de tudo, fazendo dos demais partidos comunistas elementos estratégicos subordinados à sua ziguezagueante política internacional de defesa do estado e da burocracia soviéticos. Assim, aqui cabe a pergunta até que ponto Prestes teve alguma dúvida em construir esse pesado acúmulo de erros do “Partidão”, do qual somente se livrou em 1980.

Enfim, não são poucas as qualidades que tornam a biografia de Anita Leocadia Prestes uma obra indispensável à compreensão da trajetória política de seu pai e, sobretudo, para entender por que o Brasil se apequena em não render a Luiz Carlos Prestes as devidas e merecidas homenagens.

Dainis Karepovs é pós-doutor em História pelo IFCH-Unicamp e diretor do Centro de Documentação do Movimento Operário Mario Pedrosa (Cemap-Interludium)