Estante

“Lula: a parresia no cárcere” (Kotter editorial, 2024, 228 páginas), da mestre em Educação e Filosofia, doutora em Políticas Públicas Eliana Rocha, nos apresenta um conceito crucial nessa era pós-verdade, na qual a linguagem corrente se encontra apartada de qualquer referência a verdades, fatos ou realidades, território das narrativas falsas e caluniosas, as ditas fake news, que são assimiladas facilmente, sem nenhum raciocínio ou análise crítica.

Nos dezessete capítulos de seu livro, a autora, de modo bem diverso, bate intencionalmente na mesma tecla, pois além de elucidar com erudição o conceito em pauta, nos convida a acompanhar como a noção de parresia está encarnada naquele que é considerado por muitos, o maior líder político do Brasil. De como a parresia se manifesta e se torna tangível nele, não só pelos traços de identidade e princípios morais, sobretudo matriciais (advindos de Dona Lindu), como também pelas circunstâncias inflexíveis de sua vida pessoal e social, revelados através da sua própria práxis. A parresia que se descobre profundamente arraigada na verdadeira ação do Homem Político Lula. A sua Coragem da Verdade.

A combativa e incansável pesquisadora, mestre de longa experiência, de larga formação política e destemida militância, apaixonada pelos problemas do Brasil e pela sorte de sua gente, conduz o leitor a conhecer e entender melhor um tempo tenebroso de nossa história recente. O faz por meio de um largo registro documental, realizando uma análise crítica e detalhada das transformações políticas neste período. E aqui, entenda-se como registro, as entrevistas concedidas pelo então preso político Luiz Inácio Lula da Silva – a voz do atual Presidente da República Federativa do Brasil que quiseram, naquele tempo, silenciar no encomendado cárcere.

Seu texto é fruto de obstinada procura e cuidadosa recolha, trabalho de investigadora sempre atenta aos princípios da observação e averiguação. Que ao lançar mão de sua sólida fundamentação douta (extraída de sua tese documental acadêmica), reproduz o tema de forma cuidadosa e simples, visando à compreensão de um público geral. Oferece, ainda, certo deleite literário que nos faz atravessar seu percurso com prazer.

Eliana Rocha sustenta seu texto/tese, ao mesmo tempo que convence o leitor de que um assunto tão especializado está ao alcance de todos, ao demonstrar didaticamente que a política é também algo natural e inseparável do ser humano.

Após realizar uma breve contextualização dos governos Lula/Dilma, passa a desenhar a arquitetura do golpe, apontando a vergonhosa judicialização da política. Lista a oposição ideológica do ódio, o papel da mídia hegemônica, a vulnerabilidade do sistema de justiça, a ingerência estrangeira; todos unidos contra o líder trabalhista na prática armada do lawfare, que será finalmente desmascarada e confirmada com o vazamento das mensagens promíscuas entre procuradores da República, e, entre estes e o juiz da dita “república de Curitiba".

A autora, sem ambições biográficas, aborda a dimensão ético-política de Lula, seu exercício como presidente do Brasil, sua filosofia e práxis política, até alcançar no oitavo capítulo, o mais longo, a prisão política de Luiz Inácio. O extenso capítulo é tanto o resultado do foco principal de seu estudo, como também símbolo do largo tempo do injusto cativeiro.

Percebe-se como Eliana Rocha relaciona o encarceramento de Lula com objetivo de lhe tirar a voz, de impor ao presidente um isolamento absoluto, de lançá-lo ao abandono, afastá-lo do povo, de levá-lo mesmo à desesperança e ao desespero. Pode-se mesmo dizer: de torturá-lo com requinte de crueldade. Objetivo este barrado em parte pela sua natureza combativa, as visitas dos seus próximos e o suporte que recebeu do Movimento Lula Livre.

Relaciona também seu cativeiro como extensão da arquitetada deposição golpista da Presidenta Dilma Rousseff, da cruzada moralista de combate à corrupção, e mesmo, do contexto maior de uma guerra híbrida como forma de dominação geopolítica. É a apropriação do Pré-Sal, a desestabilização da nossa indústria do petróleo e mesmo de nossa própria soberania. Reforça, mais uma vez, a associação da mídia corporativa à infame LavaJato.

Permita-se, usando a feliz expressão de Lana, que as “considerações transitórias finais” desta resenha, se voltem para o segundo capítulo de seu livro, e que inclui de modo sucinto o cerne filosófico de sua tese: Lula parresiasta? Seria Luiz Inácio um daqueles que em atos de coragem, ao produzir um discurso verdadeiro, necessariamente coloca sua existência em risco?

Lendo-se com desvelo este capítulo, é possível, usando-se uma expressão psicanalítica, vislumbrar seu insight, de como a autora demonstrou no seu estudo que a trajetória de Lula “descortina paulatinamente uma atitude parresiática” ao colocar em risco sua liberdade, sua segurança e sua própria vida. Que seu percurso é uma afirmação de que a ética da parresia não só é possível, como se torna uma missão de sua vida. De que por meio desta obstinada tenacidade, parte em busca de seu Atestado de Inocência. Obstinação de inocência que para Eliana Rocha, tornou-se a pedra angular, a base sólida, que ele necessitava para conseguir chegar à altura que alcançou, como homem livre, sem cair, derrubando toda uma costurada farsa. EUREKA!

Pergunta-se: como teria a autora chegado à tal compreensão? Entende-se que mediante a um imenso processo de identificação. Além de ser reconhecida por falar francamente e de modo destemido, possui, sabidamente, a segunda característica da parresia: o cuidado de si na construção de sua ética pessoal, pois como afirmou Michel Foucault, filósofo a quem reporta-se, “não se pode cuidar de si mesmo, se preocupar consigo mesmo sem ter relação com o outro. E o papel desse outro é precisamente dizer a verdade”.

Conclui-se que seu livro contribui para uma compreensão mais alargada deste momento de forte abalo da nossa democracia, onde a bajulação, a mentira, o ódio e mesmo a violência, minam os bens civilizatórios em que a verdade deve sempre habitar. Pelas mãos de Eliana Rocha pode-se parafrasear a máxima que o Presidente Lula tanto repetiu: “não troco minha dignidade pela minha liberdade”, ou seja, “NÃO TROCO MINHA CORAGEM DE VERDADE POR MINHA LIBERDADE”. O livro é enfim, o encontro feliz de dois parresiastas.

Pedro Paulo de Azevedo é médico formado em 1979 pela Escola Médica do Rio de Janeiro da Universidade Gama Filho. Psicanalista, titulado pela Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, filiada à International Psychoanalytical Association (IPA), exerce sua clínica psicanalítica e médica psiquiátrica na cidade de Petrópolis desde 1985.