Estante

Leitor ou leitora, prepare-se para compulsar um livro de culinária fora de esquadro. Se esperar um conjunto só de fichas de receitas, uma atrás da outra como costumam ser os compêndios da especialidade – equivocou-se. Se pensar que vai ler um ensaio de texto corrido com reflexões sobre gastronomia, também errou o alvo. Em compensação, vai tomar contato com um livro para saborear (sem trocadilho), em que as receitas se entrelaçam com a crônica de uma família, com a história do Brasil e com o papel que a alimentação tem nisso tudo. É uma boa surpresa: não é todo dia ou toda hora que a comida se revela como núcleo pulsante de todo um contexto sociopolítico e afetivo.

Também não são quaisquer receitas. São apenas aquelas que, provadas e comprovadas, se integraram indissoluvelmente ao tecido dos eventos aqui narrados e das biografias. Só resistiram à usura do tempo quando ganharam um lugar especial na memória conjunta e nos fastos desse coletivo familiar.

O leitor certamente se identificará com a maioria das receitas e dos eventos, pois todos festejamos aniversários com bolo e velinhas, assim como oferecemos ao aniversariante as iguarias prediletas. Por outro lado, as receitas propriamente ditas são, em sua maioria, pouco exóticas, não sendo exclusivas dessa casa, mas ao contrário achando-se entronizadas em grande número de lares.

Entretanto, têm paralelamente um toque tradicional. Aliás, saudável e nutritivo. Em casa de Zilah Abramo não entrava refrigerante, por exemplo: à sua mesa, mesmo os mirins recebiam suco de frutas e já iam aprendendo o que é bom para a saúde.

Os pratos recomendados nunca são complicados. Pois uma mulher com cinco filhos, trabalhando em empregos de dia inteiro a vida toda, e ademais militando em política, não teria tempo, mesmo com o auxílio de empregadas domésticas, para fazer algo mais elaborado. Nessa casa, os filhos às vezes reclamavam que a mãe e o pai, que já passavam o dia inteiro no trabalho, ainda iam a reuniões políticas nas horas vagas, enquanto os pais das outras crianças não iam. Zilah e Perseu retorquiam que era justamente por isso que não poderiam faltar – por eles mesmos e pelos pais que não iam.

Mas é possível perceber a atenção de Zilah em atender aos requisitos do gosto alheio, sempre arbitrário, o que todavia encontrava nela esse traço de tolerância que era tão saliente em sua pessoa. Se um filho ou um neto não gostava de frango, Zilah não ia deixá-lo com fome nem castigá-lo, mas servia-lhe um bife, e só para ele.

Tampouco vamos encontrar ingredientes caros. Eram contrários ao credo de Zilah o luxo e a despesa exagerada. Com forte consciência social, ela era do básico e do alimentício. Nem por isso as comidas deixam de ser deliciosas, criativas, apetitosas – e a leitura deste livro enfatiza essa qualidade de agradar ao paladar e não temer o prazer.

É instrutivo e até didático ver como Zilah ia interessando as quatro filhas (Mário, o único filho, refugou) nos afazeres da cozinha desde crianças. Chamava-as para participar e ia-lhes conferindo funções condizentes com a idade e o estágio de desenvolvimento. Assim aprendiam, no avental da mãe, a executar tarefas simples, como peneirar a farinha ou quebrar os ovos, separando cuidadosamente a clara da gema – pois, se o mais ínfimo fiapo de gema invadir a clara, esta não “subirá” quando batida e jamais atingirá o ponto de neve. Se um desastre como esse acontecer, é melhor reservar para outra preparação esses ovos por assim dizer contaminados e recomeçar da estaca zero. Isso se aprende, isso é um saber de ofício. A aprendizagem era premiada com o privilégio de lamber a colher de pau e raspar o fundo da panela, sendo tais privilégios distribuídos de modo a que todos fossem atendidos sem gerar rixas. É assim que vamos vendo e acompanhando a imensa sabedoria dessa, mais que mãe, matriarca. Zilah era democrática até à medula. Sem dizer nada, ia sublinhando em primeiro lugar o respeito ao trabalho manual.

As quatro filhas escrevem sobre a experiência, bem como algumas das netas e outras pessoas da parentela. Uma sobrinha é autora das aquarelas que ilustram o livro e que dá gosto contemplar. Com os textos delas, amparados pelas ilustrações, vamos nos inteirando não só do fogão e do forno mas, mais ainda, do agenciamento dos afetos e da pedagogia cotidiana que a comida implicava nesse lar. É uma lição para o leitor, que provavelmente nunca se deu conta de que uma radiografia de sua vida e de seus próximos se destila nos hábitos alimentares da casa.

Todas contribuem com suas receitas favoritas, que aprenderam a fazer com Zilah. Recebem lugar especial no livro, lembradas com carinho e gratidão, as empregadas domésticas, fundamentais para o funcionamento da casa e do coletivo, sendo que algumas deixaram receitas que foram integradas ao passadio da família. A última delas, Zenilde, que cuidou de Zilah na parte final de sua vida, contribui com um caloroso depoimento.

Mais que tudo, vai-se delineando ao longo do livro a figura extraordinária de Zilah. Sua firmeza, sua integridade, sua bondade, que não reservava só para os seus mas estendia a todo mundo. É no trato com a culinária caseira que vamos encontrar a inimitável combinação que era só dela: uma intransigência de aço nos princípios e nas convicções, que se entremostrava na militância, aliada a uma cortesia, a um calor humano, a um grande coração, que jamais seriam nem poupados nem sonegados. Não é à toa que recrutaram coortes de amigos e admiradores, pois, como ninguém ignora, essa combinação é mais do que rara. Torna-se urgente escrever uma biografia de Zilah – e aguardamos esperançosos os candidatos a essa bela missão. Por mais que ela própria, sincera e autêntica em sua modéstia, tenha-se esquivado em vida a colaborar, o presente livro já é um passo nesse sentido.

Como vimos, e como leitores e leitoras verão, este é, com muita honra, um livro de mulheres, a respeito de uma matriarca: e agora, de um verdadeiro matriarcado ampliado.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária, professora emérita da FFLCH da USP e integra o Conselho de Redação de
Teoria e Debate