Jacob Gorender é um intelectual marxista que reúne qualidades raras. Alia atividade militante de organizador e intelectual orgânico das classes populares a um conhecimento teórico e historiográfico incomum. No meio intelectual, é mais conhecido pela sua obra monumental sobre o escravismo colonial: na esquerda militante brasileira é respeitado por sua longa história de luta pelo socialismo. Esses dois aspectos de sua atividade encontram-se, como era de se esperar da parte de um marxista, unidos, sem por isso perderem sua especificidade. Nesse seu novo livro, Gorender toma um problema prático de atualidade e importância transcendentes e mobiliza seu amplo conhecimento de intelectual e militante para apontar caminhos para um balanço da desagregação da União Soviética e da crise dos países do Leste Europeu.
Que um intelectual marxista se manifeste de maneira abrangente sobre tal tema já é um fato importante e auspicioso. Salvo erro nosso, esse é o primeiro trabalho do gênero escrito por um marxista brasileiro. O livro está dividido em dez capítulos que examinam a relação do marxismo com o antigo regime soviético, o sistema de ditadura unipartidária, o problema do planejamento burocrático da economia, as crises, contradições e reformas do capitalismo no século XX, a perestroika de Gorbachev e o seu desenlace na política de restauração de um capitalismo de tipo ocidental e, finalmente, discute as bases de um novo projeto socialista como alternativa à barbárie do capitalismo triunfante neste final de século. O trabalho afirma-se como referência obrigatória, a partir de agora, no debate da esquerda brasileira.
O livro prende o leitor e contribui para o debate pelo fato de contemplar grande parte das dúvidas, polêmicas e problemas enfrentados pelo movimento socialista ao longo do século XX. A forma de exposição escolhida pelo autor surpreende. Gorender simula um diálogo entre um intelectual marxista - Marcino - e um intelectual liberal - Liberatore. As posições e argumentos do marxista e do liberal são apresentados frente a cada um dos temas contemplados nos dez capítulos, denominados diálogos.
Marcino é convincente quando analisa as contradições do capitalismo atual. Afasta-se das idéias dominantes na presente conjuntura ideológica, segundo as quais o capitalismo teria, com o mercado e a democracia liberal, alcançado uma vitória definitiva. Enumera as contradições e dificuldades do capitalismo neste fim de século, sem cair numa posição catastrofista de que o capitalismo não teria margem para reformas.
Liberatore é um erudito, insiste no fracasso da experiência soviética, na inviabilidade da economia racionalmente planejada e se apóia no argumento de que toda proposta de reorganização geral da sociedade segundo um projeto pré-estabelecido conteria, em germe, uma ditadura burocrática da minoria da população.
A réplica de Marcino consiste, para simplificarmos, em retomar e desenvolver, com base nas informações e debates teóricos atuais, teses de Trotski, Bukharin e Rosa Luxemburgo (a impossibilidade do socialismo em um só país, a formação de uma burocracia privilegiada na antiga URSS, a adoção precoce da estatização e do planejamento integrais, a necessidade do pluralismo na sociedade socialista) para explicaras "deformações" do projeto socialista na URSS. O que morreu na União Soviética foi, segundo Marcino, o stalinismo e não o marxismo.
Talvez valha a pena apresentar uma indicação polêmica. Parece-nos que Marcino efetua aquilo que pode ser caracterizado como uma oscilação teórica. Quando analisa os países ocidentais, Marcino mobiliza o aparato conceitua) marxista: modo de produção, crises cíclicas, luta de classes, Estado como organizador da dominação de classe etc. As circunstâncias históricas do século XX contam na sua análise, mas sempre inseridas nas leis e tendências do modo capitalista de produção e do sistema imperialista. Quando se refere à antiga União Soviética, o aparato conceitua) marxista cede lugar a considerações de ordem mais empírica, nas quais o fracasso da URSS aparece mais como o resultado, perfeitamente evitável, de circunstâncias históricas e de políticas e concepções equivocadas.
Não há um conceito de modo de produção orientando a análise do surgimento, do papel e da eficácia de tais circunstâncias. A URSS é sumariamente caracterizada como um país onde teria tido vigência um "socialismo de Estado", sem que o livro esclareça com rigor o que seria esse modo de produção. Uma análise marxista da URSS, concebendo-a como uma sociedade de classes sob a dominação de uma burguesia de novo tipo, parece-nos, como mostram os trabalhos de Charles Bettelheim, fornecer um caminho mais seguro para a compreensão da sua desintegração. Reconhecemos, contudo, tratar-se mais da indicação de um caminho para o enfrentamento de um tema de grande complexidade do que de um projeto analítico já realizado.
Espero que tal indicação polêmica muito sumária estimule o leitor essa resenha a conhecer o trabalho que Gorender colocou à disposição dos intelectuais e da esquerda brasileira.
Armando Boito Júnior é professor de Ciência Política da Unicamp.