Em 1979, voltando do exílio após a anistia, Marco Aurélio Garcia produziu uma série lendária de artigos para o jornal alternativo Em Tempo sobre a história da esquerda brasileira de 1960 a 1979. Tratava-se de enfrentar o desafio de escrever uma história no calor da hora sobre os 20 anos que antecediam aquele momento chave de luta pela construção democrática, marcado pela mudança na lei de organização partidária proposta pelo governo militar, extinguindo o bipartidarismo anteriormente imposto. Ela proibia os partidos comunistas, mas dava brecha para organizar um partido legal à esquerda com o qual Marco Aurélio Garcia viria a se identificar, ajudando a construí-lo pelo resto da vida, o PT.
Militante estudantil do clandestino PCB no começo dos anos 1960, dirigente da UNE, vereador em Porto Alegre pelo Partido Republicano, integrante do POC depois do golpe de 1964, levado pelas circunstâncias a exilar-se no Chile e na França, a história de vida política de Marco Aurélio se enlaçava com a série de matérias que escrevia. Elas não deixavam de significar um acerto de contas pessoal e geracional com o passado recente que permitiria dar passos em relação ao futuro que se abria para a esquerda brasileira. Vivia-se o clima efervescente dos então chamados novos movimentos sociais, notadamente o novo sindicalismo liderado pelos metalúrgicos do ABC paulista, também o ressurgimento público do movimento estudantil, a organização de lutas feministas, de negros e homossexuais, além do florescimento da esquerda católica inspirada pela teologia da libertação, ligada aos movimentos populares por direitos sociais nas periferias das grandes cidades, notadamente São Paulo, onde o autor das matérias se estabeleceu. Eram os “novos personagens que entravam em cena”, conforme o título do livro de seu amigo Eder Sader. Tudo noticiado pela vibrante e diversificada imprensa dita alternativa, da qual fazia parte o jornal Em Tempo, que agrupava colaboradores de várias tendências de esquerda, entre os quais Marco Aurélio Garcia, integrante do conselho editorial.
A abertura política e o fim da censura prévia à imprensa possibilitavam a ousadia de divulgar a história recente da esquerda brasileira, obrigada a lutar na clandestinidade. Não se tratava apenas da tarefa de difusão jornalística com intuito político, mas também de construção do conhecimento histórico, recorrendo à consulta e análise de documentos, entrevistas e outras fontes, buscando o maior distanciamento possível para tratar com isenção as várias correntes de esquerda. Esse empenho historiográfico resultava também da formação de Marco Aurélio como estudante em Paris em 1968 e 1969, posteriormente professor no Chile e na França ao longo dos anos 1970, trajetória que teria continuidade como docente da Unicamp, onde foi diretor do Arquivo Edgard Leuenroth, cujo rico acervo de documentos sociais e políticos ajudou a construir nos anos 1980. Esse caráter de historiador – indissociável de sua trajetória como militante e dirigente político – nem sempre é incorporado à imagem pública de Marco Aurélio, em parte porque seus escritos estavam pulverizados em publicações diversas. Os organizadores da coleção MAG, Bruno Gaspar, Rose Spina e Dainis Karepovs, trataram de realizar a tarefa inacabada do autor, compilando o essencial de sua produção em três grossos volumes patrocinados pela Fundação Perseu Abramo e pelo Instituto Futuro – Marco Aurélio Garcia [Volume 1, Volume 2, Volume 3].
Quanto ao volume específico que comento, cabe realçar o empenho de Dainis Karepovs, pesquisador destacado da história da esquerda brasileira, tão avesso à lógica das celebridades no mundo intelectual que aparece discretamente na edição. Entretanto, sem roubar a cena, sua intervenção foi decisiva no trabalho de organizar a contribuição pioneira de Marco Aurélio à história da esquerda brasileira na série de artigos para o Em Tempo, uma tarefa que o próprio Marco Aurélio sempre adiava. Tratou de recuperar das páginas do jornal e dar forma orgânica de livro à primeira visão densa de conjunto publicada sobre o tema, antecedendo em oito anos o livro Combate nas Trevas, de Jacob Gorender, que obteve merecido sucesso.
Em Tempo iniciou a publicação da série Contribuição à História da Esquerda Brasileira em agosto de 1979, chegando a um total de 29 artigos, 22 deles de Marco Aurélio, autor também de mais duas matérias e respostas a várias cartas. Todo o conjunto está reproduzido no livro organizado por Karepovs, que observou que a série anunciava pretender dar resposta ao anseio detectado na juventude de conhecer a história recente. A julgar pelo aumento de vendagem do jornal, acertou em cheio. Posso dar um testemunho: estudante aos 20 anos, ainda sem imaginar que viria a pesquisar esse tema academicamente no futuro, toda semana eu corria à banca para comprar um exemplar do jornal. Colecionava as matérias que viriam a ser de acesso difícil para as gerações seguintes, até que em boa hora finalmente elas foram transformadas em livro, 40 anos após sua edição original.
Muito se publicou sobre o tema desde então, mas nem por isso o texto envelheceu. Continua tendo interesse não apenas pela reconstituição histórica bem embasada, mas especialmente pela proposta analítica original de síntese da experiência da esquerda brasileira. Ajuda a compreender, por exemplo, o fracionamento e as divergências entre as 34 organizações elencadas, a partir de três eixos: o caráter da revolução brasileira (nacional-democrática ou socialista), o tipo de organização revolucionária (partido ou grupo de guerrilha), e as formas de luta para chegar ao poder (pacífica ou armada – insurrecional ou guerrilheira – com ênfase no campo ou na cidade), com diversas posições híbridas ou intermediárias entre cada alternativa. Essas três coordenadas analíticas tornaram-se tão correntes em estudos posteriores que muitas vezes se esquece sua origem na obra de Marco Aurélio.
O volume de 645 páginas traz ainda outros artigos do autor sobre a esquerda, alguns produzidos já no novo século, mas em geral foram escritos na mesma época da série, ligados direta ou indiretamente ao contexto de surgimento do PT e da novidade que representava, embora o tema pouco apareça explicitamente. Havia nas entrelinhas a esperança de que o novo partido que se gestava pudesse ser a superação das tradições anteriores, notadamente a bolchevique e a social-democrata, indo além também do anarquismo, do trotskismo, da esquerda cristã, do trabalhismo, identificando-se com propostas autonomistas. A apreciação crítica sobre a história analisada foi feita à luz das preocupações do momento em que foi escrita, quando se enfatizava o antigo lema de Marx “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”, frase lida por Marco Aurélio e seus companheiros a partir da inspiração de autores como E. P. Thompson, Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, valorizando a experiência vivida das classes populares.
As lutas a partir de então foram várias e diversas, a roda-viva da história deu suas voltas. Marco participou de governos do PT em âmbito municipal e federal, construindo uma história que pode ser analisada com instrumentos parecidos com os que usou para pensar os dilemas da esquerda precedente, buscando compreender com serenidade seus alcances e limites, construindo um conhecimento objetivo sem perder de vista o horizonte da transformação socialista e democrática. Continuar esse trabalho é a melhor homenagem que se pode prestar ao historiador e militante que completaria 80 anos neste junho de 2021 e faz muita falta para ajudar a desvendar e enfrentar o tempo difícil que estamos vivendo.
Marcelo Ridenti é professor titular de Sociologia no IFCH/Unicamp