Estante

Mauá - Empresário do ImpérioA febre da biografia demorou para chegar ao Brasil, mas parece que veio para ficar. Não nos faltam grandes personagens, entre Zumbi e Getúlio, Tiradentes e Prestes. Mas as escolhas têm recaído mais sobre unanimidades nacionais, como Nelson Rodrigues, Garrincha, Juscelino, Vinícius ou sobre personagens em que a quase inevitável empatia como o biografado - como no caso de Chatô - a aproxima da simpática e condescendente unanimidade.

Sabemos menos dos pioneiros capitães da indústria do início da industrialização. Sabemos que viviam em meio a um liberalismo que compactuava com a escravidão, insertos em uma política primário-exportadora que não lhe favorecia as benesses governamentais e, talvez por isso, esses candidatos a empresários industriais fossem liberais, pregassem a não intervenção governamental.

A biografia de Irineu Evangelista de Souza, barão e depois visconde de Mauá, permite que seu nome deixe de ser simplesmente um nome familiar, sem conteúdo concreto para a maioria. Jorge Caldeira, um jornalista com longa trajetória em jornais e revistas, dedicou-se a retraçar seu itinerário em trabalho que sai agora publicado.

A impressão mais forte que a leitura do livro deixa é a da ousadia do barão: "Num mundo onde os grandes empresários privados costumavam ter uma única empresa. Mauá apostou na diversificação. No país onde agricultura parecia destino manifesto, ele montava uma indústria atrás da outra. Enquanto os brasileiros lamentavam a falta de escravos, Mauá implementava administrações participativas e distribuição de lucros para empregados." Isso bastaria para que tivéssemos um "barão fora de lugar" num Brasil imperial, cafeicultor, latifundiário.

Introduzido desde os doze anos - logo assumindo funções de responsabilidade numa empresa britânica, ele recebeu não apenas o know how dali, mas também a ideologia liberal em estado puro. Esta será seu oxigênio, porém também sua limitação para lidar com um Brasil que não era a Inglaterra.

Nas leituras de Adam Smith, Ricardo, Mill e Bentham buscou inspiração teórica para se opor aos arremedos de liberalismo de visconde de Cairu, o arremedo caboclo dessa ideologia. Mas foram visitas periódicas à Inglaterra que consolidaram seus vínculos e sua própria cultura, chegando a refugiar-se sob bandeira inglesa, quando se sentiu perseguido pelo governo brasileiro.

As contingências concretas fizeram com que ele tivesse que se adaptar ao capitalismo realmente existente entre nós, tornando-se um "trânsfuga envergonhado do liberalismo", utilizando trabalho escravo, apelando para a acumulação financeira, através da montagem de bancos e da exploração das diferenças cambiais. De qualquer maneira, ele fundou, em um único ano, quatro das cinco maiores empresas do país - entre elas o Banco do Brasil (em seguida estatizado), a Santos-Jundiaí, a Cia. de Navegação do Amazonas - tornando-se o mais poderoso economicamente do Império. Sua riqueza chegou a equivaler ao dobro das exportações de café de 1866, a uma vez e meia o total das receitas do governo ou ao total das exportações brasileiras do ano anterior. Seu império estendeu-se à Argentina e ao Uruguai, até sucumbir espetacularmente e ir à falência.

Seu ideário casava-se bem com o laissez-faire da época e com os modismos renascidos no neoliberalismo, incluída a versão cabocla. Como bem reitera Caldeira, sua expressão favorita - exibida por ele com orgulho e convicção - era: "Desgraçadamente entende-se que os empresários devem perder para que o negócio seja bom para o Estado, quando é justamente o contrário que consulta os interesses do país." Como se vê, as concepções fiespianas têm nele um precursor, daqueles que desejam submeter o Estado à maximização de seus lucros, em nome dos "interesses do país".

Paradoxalmente, a industrialização desejada pelo barão terminou por prevalecer, não fundada no "livre-mercado", mas no ventre mais profundo do Estado, patrocinada pelo getulismo, com uma ideologia visceralmente antiliberal. Se na Inglaterra o liberalismo era a ideologia da burguesia industrial ascendente, aqui, a necessidade de proteção, fez dessa fração burguesa uma adepta incondicional do protecionismo.

Nascida das entranhas do Estado, depois de décadas de amamentação em seu seio, o grande empresariado industrial - sem deixar de beber nesse fonte - passou ao discurso neoliberal. É hora de voltarem a exaltar o barão de Mauá e esquecer que aquele foi um aborto de industrialização, bem-sucedida sob a égide estatal, que terminou levando o Estado à falência, de cuja propagação se valem para pregar a desregulamentação, a privatização e a integração plena ao mercado mundial.

A biografia de Mauá serve para completar a biografia de uma classe que instrumentaliza as ideologias conforme suas momentâneas necessidades de acumulação.

Emir Sader é membro do Conselho de Redação de T&D.