Estante

Lupicínio RodriguesLançada em novembro último, a obra de Maria lzilda S. De Matos e Fernando A. Faria, Melodia e Sintonia em Lupicínio Rodrigues - o feminino, o masculino e suas relações, aborda a temática das relações de gênero através das letras dos sambas-canções compostos entre os anos 40 e 60 pelo famoso músico gaúcho.

Consagrado entre os músicos brasileiros, Lupicínio Rodrigues é reconhecidamente um dos grandes vultos da história da nossa música, com composições que foram gravadas pelos maiores cantores do rádio, como Francisco Alves, Dalva de Oliveira, Orlando Silva e Nora Ney, entre tantos outros que marcaram uma época.

Melodia e Sintoma insere-se na linha historiográfica que favorece estudos que contemplam novas abordagens, com especial ênfase às experiências históricas que constroem os cotidianos e as relações.

A base da obra é um amplo acervo documental de cunho jornalístico, que reúne reportagens sobre o compositor e suas próprias entrevistas, entremeado com análises sobre as relações de gênero e trechos das músicas de maior sucesso do autor.

O universo boêmio é tratado sem a contraposição ao cotidiano operário, como uma outra experiência, num outro espaço. Dessa maneira, os autores rompem com a polaridade entre trabalho e não-trabalho, recuperando o trabalho da noite, que abrange outra temporalidade, outra teia de relações, interesses e representações.

As música de Lupicínio estão repletas deste universo. Em algumas delas, ele chega a fazer uma crítica em relação ao modo de vida boêmio e à vida da maioria das pessoas comuns, como quando fala sobre o grande pesadelo dos boêmios: o relógio, instrumento acirrador das brigas entre marido e mulher.

NÃO SEI POR QUE

O RELÓGIO LÁ DE CASA

NÃO SE DÁ COMIGO

POR MAIS FORÇA QUE EU FAÇA

PARA FICAR SEU AMIGO

NÃO HOUVE AINDA UM MODO

DE NOS ENTENDER

BLEM, BLEM, BLEM, BLEM

BLEM, BLEM, BLEM, BLEM

É A LADAINHA

COM QUE ELE TODO DIA

QUANDO DE MANHÃ

EU CHEGANDO ESCONDIDO

A BEM DE DAR O AVISO

ELE COMEÇA A BATER

BLEM, BLEM, BLEM, BLEM

AINDA SE ELE BATESSE SÓ UMA VEZ

MAS CREIO QUE ELE NÃO SABE

BATER MENOS QUE TRÊS

COM ISTO MINHA VELHA SE LEVANTA

ABRE A BOCA VIRGEM SANTA

QUANTAS COISAS EU VOU OUVIR...

(RELÓGIO)

O livro destaca que é preciso ir além daquela construção idealizada que coloca o boêmio como uma pessoa desvinculada de normas familiares, de trabalho e das obrigações sociais, apresentando-o como um ser múltiplo que vive sob outros códigos de conduta, estabelecidos no universo da noite e na sua relação com o mundo diurno, cujas regras alimentam e pressionam o mundo da boêmia.

Lupi declarava que nunca cantara nada que não tivesse vivido ou testemunhado na vida de pessoas de suas relações. Suas canções traduziam, em palavras simples e versos pouco rebuscados, emoções, experiências e situações do seu cotidiano.

Na década de 50, apogeu dos cantores de rádio, suas composições o consagraram como o criador do estilo dor-de-cotovelo, transmitindo como poucos a dor e o prazer de querer, os amores malditos ou não-correspondidos.

NUNCA

NEM QUE O MUNDO CAIA SOBRE MIM

NEM SE DEUS MANDAR

NEM MESMO ASSIM

As PAZES CONTIGO EU FAREI...

(NUNCA)

É neste ponto que se encontra o cerne de Melodia e Sintonia, pois ao tratar das composições da dor-de-cotovelo, os autores analisam os perfis masculino e feminino e as representações sobre homens e mulheres contidas nas relações de gênero deste período.

Identificam, então, as polaridades no discurso poético de Lupicínio, que divide as mulheres entre "boas" e "más", "dama da noite" e "rainha do lar". Revelando uma dicotomia entre a mulher idealizada, a esposa e a mulher que encontra nos bares e cabarés, dando a cada tipo um sentido valorativo que variava conforme a circunstância e o sentimento.

QUEM HÁ DE DIZER

QUE QUEM VOCÊ ESTÁ VENDO

NAQUELA MESA BEBENDO

É O MEU QUERIDO AMOR

REPARE-BEM QUE TODA VEZ QUE

ELA FALA

ILUMINA MAIS A SALA

DO QUE A LUZ DO REFLETOR

O CABARÉ SE INFLAMA

QUANDO ELA DANÇA

E COM A MESMA ESPERANÇA

TODOS LHE PÕEM O OLHAR

E EU O DONO

AQUI NO MEU ABANDONO

ESPERO LOUCO DE SONO

O CABARÉ TERMINAR...

(A RAINHA DO SHOW)

A cada passagem de música recuperada, o livro vai mostrando mulheres enfurecidas de ciúmes do marido, mulheres traiçoeiras, amantes inconsoláveis, anjos de candura, rainhas do show, mulheres abandonadas, infiéis arrependidas, que são julgadas - desprezadas ou valorizadas - segundo padrões da sociedade da época.

Enquanto os homens surgem como personagens naturalmente inclinados à boemia, à infidelidade, à volubilidade, mas, por outro lado, sempre provedores, bons amigos, amantes pródigos, sinceros generosos em sua propensão a perdoar ou inflexíveis em suas sentenças.

O REMORSO TALVEZ SEJA A CAUSA

DO SEU DESESPERO

VOCÊ DEVE ESTAR BEM CONSCIENTE

DO QUE PRATICOU...

VOCÊ HÁ DE ROLAR COMO AS PEDRAS

QUE ROLAM NA ESTRADA

SEM TER NUNCA UM CANTINHO DE SEU

PRÁ PODER DESCANSAR

(VINGANÇA)

Ao mostrar a dinâmica da construção da masculinidade/feminilidade através de um processo interno de influência mútua, simultaneamente constituintes e constituídas, lzilda Matos e Fernando Faria ressaltam a historicidade das relações de gênero, apontando para a sua circularidade numa sociedade em constante processo de normatização.

A leitura fácil e envolvente coloca os autores como - eles também - compositores, que souberam reunir num só trabalho conceitos históricos, poesia e informação, com critério e harmonia, justificando o título que deram à obra.

Elaine P. Rocha é mestre em História pela PUC-SP.