Estante

Serelepes, as frases pululam. Saltitantes, curtas, às vezes certeiras, às vezes ricocheteando a realidade, os sentimentos, as lembranças, as interpretações, a construção do concreto pensado. Sim, é um exercício de construção do passado vivido, sentido, sofrido e curtido. O texto de Emiliano José é um primor.

Este meu texto agora foi inspirado por uma carta de um amigo comum para sua médica geriatra. Esse amigo está com Parkinson, mas lúcido, e fala sobre a finitude da vida. Tinha outras tarefas para escrever, mas não resisti a deixá-las de lado, para falar do passado e pensar sobre o futuro. Como disse o amigo em comum na sua triste e alegre carta sobre o seu futuro com a doença, a morte pode pensar que é uma amante do passado, mas cada vez mais pode se tornar a namorada do futuro. Só os velhos podem entender isso.

Voltando ao livro de Emiliano.

De uma sentada, li 177 páginas, passando da sua chegada na Bahia, o ano de 1968, as lutas estudantis, a clandestinidade e luta contra a ditadura, a repressão, a prisão, a tortura e a convivência com os personagens.

Nesse primeiro momento, voltado para um passado de formação, de lutas e de opressão gigantesca, da qual Emiliano foi uma grande vítima, há também os momentos de organização popular, disputas internas, esperanças, sonhos, solidariedades, companheirismo e traições humanas. As personagens vão se afirmando, se constituindo e eu, como convivi com muitos dos fatos, me identificava com o que acontecia. A atenção se prendia e a imaginação se soltava. Os fatos e a interpretação dos fatos se misturavam. O passado surgia no presente com uma grande multiplicidade de viveres.

Na segunda sentada, cheguei ao final com os detalhes da fuga de Theodomiro. Li tudo em duas sentadas. O livro termina com a busca da liberdade. Não trata das agruras do agora e do presente.

Combinando música, memórias, pesquisas e depoimentos vividos, Emiliano mostra a multiplicidade de personagens, meninos quase, que viveram aqueles tempos com heroísmos, sofrimentos e esperanças. Éramos jovens, sonhadores e queríamos mudar o mundo. Mundo duro, repressivo, torturador, massacrante.

Emiliano, como bom marxista, procura dar interpretação e contextualizar política e socialmente o comportamento individual dos personagens. Situa as discussões teóricas da época, hoje quase singelas e até inacreditáveis nas dimensões que tomaram nas decisões daqueles tempos. Brasil feudal ou não, cerco da cidade a partir do campo, o inimigo está nos cercando, não o deixemos escapar, a integração na produção para revolução ideológica da pequena burguesia, ações de grupos armados, pequenos e corajosos, como vanguarda revolucionária. Está tudo lá.

Tem momentos também de reflexão política sobre os caminhos a tomar, as escolhas das várias organizações e dificuldades de perceber a realidade em torno. Não é uma lembrança chata, teórica e sem vida. Não. É uma lembrança vivida, militante, com envolvimento pessoal com temores, dúvidas e incertezas, que hoje são mais claras do que eram contemporaneamente aos fatos descritos. Naquela época, tínhamos muito mais certezas.

As frases curtas, vivas e ritmadas se mesclam com parágrafos longos, quase sem vírgulas, que não nos deixam respirar quando debate a tortura, sua humanidade ou desumanidade, os momentos de derrotas e os sofrimentos. A vida segue. Estamos falando de fatos e experiências de mais de 50 anos atrás. Não queremos que retornem, mas precisamos saber deles, refletir sobre eles e aprender com eles.

Senti uma dúvida. Gostei muito do texto e da abordagem, mesmo com as repetições típicas dos velhos e os detalhes de algumas descrições. Para mim, que vivi parte da mesma experiência, o texto é rico, fascinante, relembrador e ajuda na interpretação. Prendeu muito minha atenção. Mas, pergunto-me, o que acontece com um jovem leitor ou leitora que não viveu aquele tempo e não sabe vivencialmente o que é a ditadura? Será que a sucessão de personagens e fatos, episódios e análises receberá a mesma atenção? Não tenho respostas! Parabéns Emiliano pela reconstrução.

A carta do nosso amigo em comum me fez também pensar em como a finitude de nossas vidas, que já passamos dos 70 anos, pode valorizar o que experimentamos no passado. As limitações físicas de nossos corpos nos fazem ver que não podemos tudo, mas fizemos quase tudo. Pena que não teremos mais forças para corrigir os nossos erros e refazer muitas das nossas trajetórias.

Com a morte podendo ser a nossa futura namorada, as lembranças do passado e principalmente a troca dessas experiências com os mais jovens, com os que estão na frente das mudanças que o mundo social vive, bebendo dos nossos ensinamentos e das nossas vivências de acertos e erros, mas, principalmente, construindo novos caminhos, espero, com mais acertos do que desacertos, o namoro pode ser adiado. A morte é inexorável para os indivíduos, mas as memórias, contribuições e lutas continuam sempre. Emiliano contribui para manter essa futura namorada longe. Por um tempo.

José Sergio Gabrielli é professor titular aposentado da UFBA, ex-presidente da Petrobras