Estante

México em transeO último livro de Fukuyama - datado já depois do fim da história - tem no título a palavra "confiança". Um capitalismo que, desregulamentado, depende das disposições do capital financeiro para definir seu ritmo de vôo, sua velocidade-cruzeiro e seus territórios provisórios de pouso, fica subordinado à "confiança" dos analistas de risco e dos especuladores diretos.

O México foi vitima dessa "falta de confiança", apenas a ponta de um iceberg profundo. Depois de jurar que não ia desvalorizar sua moeda, o governo mexicano resolveu ficar "um pouco grávido" e de seu ventre nasceu a virada de confiança nos ajustes fiscais neoliberais na América Latina. Embora, cumprido um ano da crise mexicana, o Time se apresse em diferenciar a crise atual daquela da dívida, em 1982, esqueceu-se que a globalização financeira fez com que esta afetasse todos os mercados, ao contrário daquela, que tinha que ver com os países devedores e os bancos credores.

Igor Fuser, editor internacional da revista Veja teve a possibilidade de ver diretamente as duas caras da moeda: entrevistou Carlos Salinas, então aclamado presidente, candidato a capa da Time como homem do ano e depois retomou ao país duas vezes mais, para verificar in loco as conseqüências das armadilhas e do campo minado deixado por Salinas.

O resultado é um livro que representa o melhor testemunho da trajetória de um país mergulhado nas desventuras do neoliberalismo latino-americano. Igor Fuser volta ao início do regime unipartidário, resultado da fusão do PRI com o Estado mexicano, que data de 1928 e que transformou esse partido numa gigantesca agência de empregos públicos.

Essa foi a modalidade hegemônica num país marcado pela primeira grande revolução do século, pela contigüidade com a maior potência imperialista da história, por esse regime ditatorial e, mais recentemente, pela exploração de petróleo e pela modelar experiência neoliberal.

Se fôssemos buscar outra referência essencial, ela viria das civilizações asteca e maia e dos enfrentamentos com os colonizadores. Em O Labirinto Perdido, Octávio Paz fala extensamente do complexo de Malinche que afetaria ao povo mexicano, produto da capitulação da nativa, conquistada pelo encanto dos invasores. Essa ambigüidade - tornada contemporânea pela relação de admiração e ódio com os EUA - seria um dos componentes da contraditória identidade mexicana.

O experimento neoliberal representa uma nova viagem por essa ambigüidade. O aceno norte-americano com o ingresso ao Nafta e as promessas de uma carona para o acesso ao Primeiro Mundo, seriam uma tábua de salvação à combalida economia mexicana, ferida gravemente com a crise da dívida de 1982.

O livro de Fuser se concentra mais particularmente no mandato de Salinas, eleito por uma fraude, projetado internacionalmente nas costas do projeto neoliberal, apoiado pela grande mídia norte-americana e seus consórcios locais. Somente,um tempo depois, as mazelas ressurgiram debaixo do tapete. Os resultados sociais do Programa Nacional de Solidariedade, por exemplo, não deixam margem para dúvidas: os gastos com educação encolheram 21%, o orçamento de saúde caiu de 4,7% do Produto Interno Bruto para 2,7%. O poder aquisitivo dos salários, por sua vez, diminuiu, em média, em um terço. Mesmo o bolo, pouco cresceu - apenas 0,4% anuais em seis anos, descontado o aumento populacional. Como resultado, os 10% mais ricos possuem 60% da renda nacional, contra 38% apenas cinco anos antes. Como exemplo, o México passou a ser o terceiro país do mundo em quantidade de bilionários na lista da revista Forbes.

Quando a desconfiança se abateu sobre o volátil mercado financeiro mexicano, o país ingressou na pior crise de sua história, com o maior retrocesso social que havia conhecido. Chiapas foi apenas uma chispa que ascende cotidianamente às sete manifestações diárias, apenas na capital mexicana, de protesto pelos desastrosos efeitos sociais da embriaguez financeira, recheada de corrupção e escândalos, como tem sido usual nos processos de acelerada privatização do Estado na América Latina, sob a cobertura ideológica do neoliberalismo.

Ao deter uma das maiores reservas inexploradas de petróleo do mundo, enquanto seu vizinho do norte tem reservas para pouco mais de dez anos, o México não precisou privatizar sua empresa estatal de petróleo para perder sua soberania. Para garantir os generosos 50 bilhões de dólares de empréstimos que obteve de organismos internacionais e do governo norte-americano para pagar os papéis de sua dívida aos próprios empresários dos EUA, os dólares do petróleo têm que ser obrigatoriamente depositados em bancos norte- americanos.

Assim, México em Transe - ou Deus e o diabo na terra do Pronasol ou Cabeças cortadas ou O leão tinha sete cabeças -, coloca de molho as barbas dos neoliberalismos do resto do continente. Pior: demonstra que nossos governantes de turno respondem com mais neoliberalismo à crise do neoliberalismo, como Menem e Zedillo o demonstram. Levam nossos países a uma aventura de difícil retorno, que somente pode ser detida e revertida por uma enorme derrota política e social que, sem dúvida, começa com a quebra do consenso neoliberal. Para o que, a leitura do livro de Igor Fuser contribui de forma efetiva.

Emir Sader é membro do Conselho de Redação de T&D.