Estante

paulsingercapa.jpegUm militante solidário. Assim também poderíamos definir a personalidade histórica de Paul Israel Singer. Austríaco que se tornou brasileiro, economista que adotou o socialismo, socialista que defendeu a autogestão, Singer teve uma trajetória coerente. Dentro do socialismo democrático ele não se limitou à social-democracia, acercou-se das ideias de Rosa Luxemburg e dialogou com as notáveis contribuições de outro militante austríaco, fundador da Polop, Erich Sachs.

O livro que acaba de sair é o memorial acadêmico entregue pelo autor à Universidade de São Paulo para obtenção do cargo de professor titular de Macroeconomia na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), em 1983. Agora, é publicado em sua melhor condição: um livro de memória militante editado na “casa” do autor: a USP. E numa coleção em capa dura, ilustrada e belamente editada pelos alunos do curso de Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Como o leitor sabe, a história continua. Escrito há vários anos, o memorial não podia conter em gérmen os papéis históricos que o autor desempenharia depois. Fundador do PT, Singer dedicou-se ao ensino e à pesquisa comprometida com os graves problemas que o Brasil viveu nos anos 1980-2002: inflação, desemprego e má-distribuição da renda.

O primeiro deles foi equacionado quando Fernando Henrique Cardoso adotou o Plano Real, mas o desemprego só foi reduzido nos oito anos de governo Lula. A desigualdade de renda continuou a ser uma questão social grave, apesar da queda do índice de Gini nos últimos anos.
As diferentes conjunturas dos quase trinta anos que nos separam da concepção daquele memorial afetaram a produção intelectual de Paul Singer.

Como um economista militante e dedicado à pedagogia social, ele publicou ainda em 1983 um verdadeiro clássico do aprendizado de toda uma geração: Aprender Economia (Editora Brasiliense). Seguiram-se outras obras como O Que É Economia; O Capitalismo – Sua Evolução, Sua Lógica e Sua Dinâmica (São Paulo: Moderna, 1987); Repartição de Renda – Ricos e Pobres Sob o Regime Militar (Rio de Janeiro: Zahar, 1986); A Formação da Classe Operária (São Paulo: Atual, 1985); e um livro de capa verde que encantava os alunos dos cursos de formação política nos anos 1980: Curso de Economia Política.

Em todos aqueles livros, o estilo seguro e didático permitia aos leitores penetrar o umbral da ciência econômica e conhecer os clássicos tanto liberais quanto marxistas. Pela abrangência temática de seus artigos, notamos seu compromisso com o presente. O autor formulou propostas de superação do quadro inflacionário através de câmaras setoriais de empresários, trabalhadores e governo. Filosoficamente, Singer aderiu sempre ao diálogo como única maneira de solucionar os conflitos. Assim, propôs no governo Luiza Erundina, no qual foi secretário de Planejamento, um conselho de arbitragem das tarifas municipais, entre elas a de ônibus. Ajudou a formular a mais radical proposta municipal do Brasil: a tarifa zero para usuários de transportes coletivos, financiada por um imposto territorial urbano progressivo e pela economia que seria feita com gastos de cobrança de passagens. Infelizmente, a proposta foi rejeitada pela grande imprensa e pela oposição política ao PT.

Em alguns cursos na USP Singer discutiu tópicos de distribuição de renda nos anos 1990, atuou no PT e sempre apoiou as iniciativas dos mais jovens militantes. Lembro-me do quanto ele foi generoso com o Núcleo de Estudos de O Capital (PT-SP) em debates, conversas pessoais e artigos que escrevia solidariamente para nós.

A esse respeito me permito contar um caso pessoal que ilustra a imagem de extremada cordialidade que Paul Singer deixava entre os jovens militantes. Certa feita, marcamos com ele mais uma reunião pequena em que o professor Singer praticamente nos dava aulas gratuitas sobre temas da conjuntura. Às vezes para um grupo de cinco ou seis pessoas! A reunião se realizaria no prédio da USP, na Rua Maria Antônia, então restaurado e devolvido à universidade. Ocorre que o Diretório Estadual do PT tinha marcado no mesmo dia e horário um enorme seminário nacional também com ele, sem avisá-lo. Singer negou-se a ir, pois já havia se comprometido com nosso grupelho de jovens. Até Paulo Frateschi, presidente do partido, mandou um carro na USP me procurar para que eu “liberasse o Singer”. Claro que encontramos uma maneira de “sacrificá-lo”, e ele se dividiu entre os dois eventos.

Mas o que faz com que seus argumentos sejam tão persuasivos é sua honestidade intelectual. Depois de prever o fracasso do Plano Real, ele declarou: “Eu me enganei redondamente face ao Plano Real. (...) O erro que eu cometia, e suponho que outros também, foi imaginar que uma âncora cambial – que na verdade funcionou – não poderia ser suficiente em uma economia em que o coeficiente de importação não chegava nem a 10%. (...) Eu achava que, num país tão pouco aberto ao comércio internacional como o nosso, uma âncora cambial não seria suficiente para conter a inflação. Eu estava enganado. Eu não considerei o fato de que era possível abrir de chofre o mercado interno e praticamente aumentar em 150% os valores das importações. Foi o que aconteceu entre o primeiro semestre de 1994 e o segundo semestre de 1995. Mais que dobrou o valor das importações em um ano e meio. Foi um negócio fantástico! Tinha havido um influxo muito grande de capital, criando para o Brasil reservas cambiais enormes, capazes de bancar portanto essa abertura do mercado interno. Estava sobrando capital no mercado internacional, e o Brasil estava sendo visto com olhos gulosíssimos para se investir, desde que houvesse alguma estabilização crível. Então, o capital internacional foi o fundamento do Plano Real. Eu não tenho dúvidas de que funcionou” (Teoria e Debate nº 35, julho/agosto/setembro de 1997)

Singer retomou estudos sobre o mercado financeiro, a globalização e a relação entre economia de mercado e socialismo. Lembro-me de que nos brindou certa vez com um debate no auditório do Sindicato dos Bancários de São Paulo, ao lado de Jacob Gorender, sobre o mercado e o socialismo, mais tarde publicado na Revista Práxis, que nós editávamos. Sobre o mercado de trabalho e a globalização, ele colaborou muito gentilmente num livro que nosso núcleo ainda juvenil organizou: Um Olhar Que Persiste: Ensaios Críticos sobre o Capitalismo e o Socialismo (São Paulo: Editora Anita, 1995).

Com o advento do governo Lula, Paul Singer passou a ocupar a Secretaria Nacional de Economia Solidária no âmbito do Ministério do Trabalho. Ele já se ocupava do tema da autogestão desde a juventude, como vimos. Em 1998 lançara o livro Uma Utopia Militante. Repensando o Socialismo (Petrópolis: Vozes). Escreveu vários outros livros e artigos, mas sua atuação fundamental deu-se na defesa do socialismo como ideia força diante dos novos desafios propostos pela globalização e pelo fracasso do modelo de planificação socialista.

Singer vê o mercado como espaço de liberdade que antecede o capitalismo e, portanto, vai sucedê-lo por muito tempo. A alocação de recursos ex ante feita num gigantesco escritório central só se mostrou eficiente para fins bélicos e em períodos de reconstrução nacional acelerada, a um custo humano insuportável. Marx imaginou que numa sociedade comunista haveria enorme produtividade e abundância. A oferta se equilibraria com a demanda a preço zero. Recordo-me de quando Paul Singer nos disse: “Seu erro foi desconsiderar o aumento das necessidades das pessoas”1

Mas, contrariamente àquela experiência centralizada soviética, Singer voltou-se para o núcleo da produção de valor: a empresa. O socialismo é, antes de tudo, a democracia econômica, como muitos socialistas, mesmo antes de Marx, já diziam.2

O Memorial de Paul Singer é um documento histórico de um militante que vive por uma utopia.

Lincoln Secco é professor do Departamento de História na Universidade de São Paulo e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate