Estante

Militar en el Gobierno é o livro de uma notável pesquisadora argentina que compara as experiências de militância em torno dos governos argentino e brasileiro durante o ciclo progressista de 2003-2016.

O título pode ser dúbio em português. À primeira vista se pensaria em numerosos oficiais militares no governo. O tema, no entanto, é o verbo “militar” e não o substantivo e não deixa de ser atual para a esquerda brasileira que deve fazer um balanço do ciclo progressista de 2003-2016: o que significa ser um militante de esquerda dentro ou em apoio a um governo?

É um truísmo afirmar que o PT no poder deixou de mobilizar a militância e esta ficou desarmada para o novo ciclo político iniciado com as “jornadas de junho” de 2013, quando as disputas se deslocaram para as ruas e as redes sociais. Muita gente saiu dos movimentos sociais para operar políticas públicas do governo.

O tema decerto não é novo. Nos primeiros anos do PT falava-se do perigo da profissionalização e burocratização e isso transparece nas entrevistas realizadas pela autora. Para algumas pessoas isso era inevitável num partido de massas que atinge o poder mediante um gradual crescimento no interior das instituições legais.

A referência muito conhecida nos meios de formação política dos anos 1980 era o emburguesamento do movimento socialista na clássica análise de Robert Michels. No decênio seguinte foi importante a recepção do livro de Adam Przeworski, Capitalismo e Social-Democracia, que citava uma frase de um socialista francês que resumia os desafios que o PT já enfrentava: “Camaradas disfarçados de notáveis ocupam-se com depósitos municipais de lixo e cantinas escolares. Ou não estão, esses notáveis, disfarçados de camaradas? Já nem sei mais”.

Juventude oficialista e não oficial

Dolores Rocca Rivarola não se volta a esse debate porque seu objeto é a juventude oficialista em torno dos governos progressistas. E como ela deixa bem claro, o oficialismo não implica necessariamente profissionalização nem ser “correia de transmissão” do governo. Trata-se de entender a militância diante da situação concreta em que o partido ou corrente dominante na esquerda ocupa o poder político.

Acima de tudo a autora não busca nem anatematizar nem glorificar e sim compreender esse fenômeno. A militância oficialista não se resumiu ao aparelhamento do Estado ou à atuação a partir de cargos no caso brasileiro. Muito menos se tornou única por poder usar sua proximidade ao aparato estatal para fortalecer redes de cooperação e resistência próprias de populações subalternizadas. Em alguma medida as duas coisas aconteceram.

Ela revela que, diferentemente do papel mais importante que La Cámpora1 exerceu junto ao governo, não houve nada parecido no Brasil. No entanto, a autora informa que emergiram outras organizações de juventude, como Movimento Evita.

As juventudes oficialistas (pró-governo) dos dois países estavam organizadas em vários espaços e múltiplas “juventudes”, mas no Brasil o PT não tinha uma influência nem uma liderança definitivas na militância juvenil. Vale lembrar que na maior parte da história da chamada “Nova República” a União da Juventude Socialista, ligada ao PCdoB, foi o principal polo em torno do qual gravitaram as disputas internas daquela entidade.

Mesmo a juventude que se identificou com o PT esteve longe de se resumir à oficial do partido. Muitos militantes etariamente jovens jamais se organizaram em torno de qualquer “juventude” instituída.

Idealização dos anos 1980

No PT há uma idealização da juventude dos anos 1980 que teria construído o partido sem cargos, com militância voluntária e mais radical. A obra traz depoimentos de pessoas de diferentes gerações. Independentemente da ótima discussão que a autora tece em torno das articulações possíveis entre presente, passado e futuro, o livro permite ir além e pensar na nossa própria vivência intergeracional num partido que acumula muitas temporalidades e espaços históricos. Se de um lado o partido se burocratizou e se profissionalizou em grande medida, de outro mudou sua composição social, regional e sexual.

Novos segmentos integraram tanto a organização quanto a base eleitoral e social; formas diferentes de relacionamento com um partido oficial e de governo surgiram e foram além da mera ocupação de postos em gabinetes parlamentares ou no poder Executivo. Blogues, núcleos virtuais e redes de interação em que a política oficial às vezes é só um elemento a mais surgiram. Movimentos como o “Ele Não” e as próprias semanas finais de campanha do PT em 2018 tiveram pouca relação com a direção partidária.

De uma organização quase federalista e democrática nos anos 1980, mas muito concentrada no Sudeste do Brasil, o PT migrou para uma máquina profissional e centralizada. Hoje os contextos históricos e espaciais são outros. Os anos 1980 foram um decênio de ativismo militante acima da média. Depois da impossibilidade de se manifestar nos anos 1970, parecia que uma nova época permitia tudo. A própria camada dirigente do partido, que iniciara sua militância durante a ditadura, ainda era relativamente jovem. Muitos quadros dirigentes que ascenderam ao governo Lula ingressaram no partido na época da maior campanha de massas da história brasileira: as Diretas Já!

Se considerarmos que aquela década se inicia com as greves do ABC em 1978 e findam na campanha do impeachment de Collor em 1992 (marcos temporais que também assinalam duas recessões econômicas profundas), a ela se sucederam quase vinte anos de queda da militância.

Uma nova década de enorme ativismo político começou em 2013. Trata-se de experiências absolutamente novas mediadas por relacionamentos pessoais, virtuais e formas organizacionais mais pulverizadas e horizontalizadas tanto à direita quanto à esquerda.
As ruas deixaram de ser predominantemente da esquerda, como nos anos 1980. Perdeu-se a batalha em torno da memória da ditadura e um elemento fascista e nostálgico da repressão institucional atingiu a Presidência da República.

De outro lado, a geração que se movimentou em 2013 confrontou preconceitos de raça, gênero e orientação sexual no seu cotidiano militante, o que antes era incomum. E o fez se apropriando de pautas do próprio PT dos anos 1980, como a tarifa zero; ou radicalizando políticas públicas e temas que a esquerda não conseguira disseminar, como as quotas étnicas, etárias e sociais.

Lulismo?

Em tempos de campanha por “Lula Livre”, Dolores Rocca Rivarola mostra ainda que a militância oficialista no Brasil, diferentemente da Argentina, não exibiu um vínculo com os traços de personalismo como os que La Cámpora teve com as figuras de Néstor e Cristina Fernández de Kirchner.

O peronismo é não só mais antigo como menos orgânico que o PT. Apesar da personalidade de Lula, a relação com os governos petistas e com seu legado é menos emocional e mais distanciada na leitura da autora. O que não deixa de ser um paradoxo, pois a população argentina tem há muito mais tempo um índice de alfabetização e de organização da sociedade civil jamais alcançados pelo Brasil.

Ocorre que o PT, embora tenha herdado parte da tradição trabalhista de Getúlio Vargas, também significou uma nova maneira de relacionar presente e passado. Criticou a tradição “populista” e incorporou discussões teóricas que ainda hoje constituem o seu “pecado de origem”.

Mesmo depois de integrar parte do legado trabalhista, o ato fundacional do partido ainda emite os sinais de uma ruptura com o passado pré-1964 entre seus intelectuais e a elite partidária. O PT é popular, mas também é visto pelos adversários como radical e promotor das lutas de classes, por mais que isso não corresponda ao modus operandi de sua direção.

Suas referências no passado histórico o colocam em rota de confronto com as da nova direita, o que não acontecia com o PSDB outrora. Políticos tucanos e petistas partilhavam a construção de uma memória comum de luta contra a ditadura e de crítica ao “populismo” (deixo de lado o debate sobre esse termo).

Na Argentina, Macri não reivindicou a ditadura como Bolsonaro. Lá a valorização do presente oficialista foi fortalecida pela necessidade de romper com o passado neoliberal e socialmente desastroso da gestão do Partido Justicialista antes de Kirchner. No máximo, como diz a autora, buscou-se um vínculo com a geração mais antiga que lutara contra a ditadura. No Brasil os governos de Lula e Dilma Rousseff se apresentaram como continuidade da história do PT.

O que talvez venha a reaproximar as duas trajetórias é a disputa em torno do legado governamental da esquerda. No Brasil este já se constitui como memória coletiva muito mais ampla e significativa do que a dos anos em que o partido era apenas uma promessa eleitoral. Da mesma maneira, os argentinos terão de lidar nas próximas eleições com uma comparação de duas experiências recentes e opostas.

Dolores Rocca Rivarola não se limitou a demonstrar sua ampla competência como cientista política ao revisitar a literatura sobre conceitos e métodos de investigação, mas uniu-a a uma sensibilidade ímpar. Fez pesquisa participante nos dois países, assistiu a comícios e atos de candidaturas, realizou entrevistas e, sem pretensão de oferecer um quadro estatístico, produziu uma pesquisa qualitativa esclarecedora para o balanço da esquerda após o desastre de 2018 e, particularmente, para o PT em seu VII Congresso que se aproxima.

A leitora e o leitor também poderão consultar a obra como uma importante referência bibliográfica para compreender o conceito de geração muito além de seus contornos cronológicos e os aspectos simbólicos e ritualísticos da militância política e social. Um livro que vale a pena.

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Lincoln Secco é autor de História do PT (Ateliê Editora, 2018, 5ª edição)