Estante

Mística e Espiritualidade é um conjunto de textos resumindo palestras proferidas pelos dois autores, durante um seminário organizado pelo Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae (Cepis) e pelo Movimento Fé e Política, nos dias 17 e 18 de maio de 1993, em São Paulo. Esses textos tomaram a forma e o sabor da ocasião em que foram produzidos. Não representam um tratado sistemático sobre o tema. São reflexões com o claro propósito de partilhar experiências, buscando o diálogo com os interlocutores para reacender, em todos, os fundamentos e a vivência do profundo sentido da vida humana.

As três pessoas presentes no seminário eram militantes, em sua maioria cristãos que tendo se engajado numa prática social, sentiam-se duramente questionados pelas derrotas do campo popular. Diante de um horizonte confuso muitas pessoas estavam tentadas a aderir à passividade, ao desânimo e até ao extremo de se entregar à lógica do poder manipulador. É nesse contexto que surgem as perguntas existenciais: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Ou inversamente, que força secreta é essa que alimenta a esperança dos que teimam em resistir e em sonhar com uma sociedade mais humana e feliz?

A mística é apresentada pelos autores como aquela dimensão integradora que, longe de ser uma fuga ou uma mistificação, reanima constantemente as energias vitais além do simples interesse e acima dos sucessos e fracassos. Ela é, antes de tudo, uma experiência forte, pessoal e coletiva no rumo da satisfação da imensa sede de plenitude humana. Por ela, nosso grandes sonhos de um mundo novo e de relações humanas e sociais mais benevolentes e amorosas, são revitalizados.

A militância não sobrevive sem essa paixão (mística), seja ela de natureza religiosa, humanística ou política. Por esse entusiasmo os visionários caminharam como se enxergassem o invisível por detrás dos acontecimentos da vida e da história. Os cristãos, por exemplo, inspirados no potencial libertário da memória subversiva de Jesus de Nazaré ousaram desafiar inclusive o império romano. Muitos patriotas abasteceram-se nos ideais emancipatórios da Revolução Francesa (liberdade, igualdade, fraternidade). Para milhões de lutadores o ideário socialista permanece como fonte imobilizadora. Manifesta na profunda indignação em face da miséria e como ato de amor político e revolucionário pelos oprimidos. Essa força da mística é que produz em todos a coragem de resistir, protestar, dedicar-se e arriscar na permanente busca da libertação.

Na afirmação dos autores, a mística é por excelência inovadora e criativa. Por isso, os místicos não aceitam uma adaptação que apenas lhes garante a sobrevivência. Baseados numa experiência de vida e não num corpo doutrinário, eles avançam sem pedir licença às instituições (religiosas ou não) quando elas não mais conseguem ser a expressão das suas convicções básicas e nem tampouco transmitem seus valores, nem suscitam o seguimento de novas pessoas. Eles sempre relativizam as conquistas.

Quem se move por uma mística não aceita a angústia como a última palavra. Porque o que entra em crise é a nossa projeção da utopia. São cristalizações históricas que não conseguem conter o grande sonho e, na prática, impedem a sua realização na vida das pessoas e das nações.

A experiência mística é uma herança universal. É possível identificá-la em todas as civilizações e no cotidiano dos indivíduos. Mesmo quando há uma tendência a padronizá-la, domesticá-la e até torná-la propriedade de alguns iniciados.
Evidentemente centram suas reflexões na tradição judaico-cristã e na espiritualidade católica. Aí está o seu maior conhecimento e também a expectativa dos participantes. Assim se referem ao Antigo Testamento e aos primeiros cristãos e apontam as diversas "escolas", os "fundadores" de ordens religiosas e as figuras que se tornaram dentro e fora da Igreja Romana: Agostinho, Francisco de Assis, Santo Tomás, Tereza D'avila, Inácio de Loiola, Afonso de Ligário, Teilhard Chardin, Simone Weil, Charles de Foucauld, entre outros.

Os autores demonstram como a mística bíblica é a mística de olhos abertos e mãos operosas tomando o partido dos fracos. Porém, essa mística do compromisso ético e solidário relaciona-se fortemente com a mística da contemplação que é o saboreamento da presença da divindade na obra da criação e no trabalho humano. É isso que levou o crente à louvação e ao entusiasmo. Nos avanços da justiça ele vê sinais da ressurreição acontecendo na história. Mas os autores também assinalam como a espiritualidade também se estreitou e não raro se apresentou como uma prática devocional intimista ou de sofisticado esforço intelectual, rejeitando uma espiritualidade afetiva e apaixonada e negando a visão bíblica do político-libertário contemplativo.

A mística expressa-se conforme a conjuntura e a cultura: aparece como indignação, protesto, conflito, disputa, articulações. Mas não pode perder a dimensão da gratuidade: a ternura, o lazer, o ócio, a festa, a poesia, a celebração e a reza. A felicidade com que sonhamos deve realizar-se, desde já. É importante que o leitor não se perturbe com a roupagem e a linguagem religiosa/cristã/católica. De espírito aberto cada um deve perceber a convocação de contribuir a seu modo, para preservar o que de melhor existe no ser humano: a capacidade de situar-se além do mundo, do tempo e do espaço e realizar seu sonho para cima fazendo coro com a experiência acumulada de tantas gerações.

Os textos de Mística e Espiritualidade, sem pretensão de ser caminho, são um testamento convidando cada um para seguir na direção da sua própria interioridade e vivenciar essa transcendência. Aí reside o dinamismo da resistência e a fonte do eterno sonho de vida plena e de liberdade, valores pelos quais os militantes chegam até à doação da própria vida. Por isso, o militante não aceita o veredicto de que o capital ganhou e mantém sua convicção de base que é associar seu destino ao grande esforço de libertação dos oprimidos.

Ranulfo Peloso é educador popular.