Estante

Monteiro Lobato: Furacão na BotocúndiaTranscorre este ano o cinqüentenário da morte de Monteiro Lobato. A data tem dado ensejo a várias iniciativas de homenagem ao escritor, inclusive uma exposição iconográfica ora aberta ao público. Dentre estas iniciativas, salienta-se a biografia lançada pela Editora do Senac, no ano passado, e assinada por Carmen Lúcia de Azevedo, Márcia Camargos e Vladimir Sacchetta. A obra já alcançou merecidamente crítica excelente. Com um texto enxuto e fluente, bem organizada nas suas diversas partes, a biografia resultou de pesquisa minuciosa e competente, motivo pelo qual pôde trazer muitos elementos novos, que contribuem para o conhecimento veraz de um homem de personalidade tão rica quanto o autor de Urupês. Demais disso, a Editora do Senac se esmerou na produção de um livro de confecção gráfica superior, que inclui iconografia abundante.

Lobato se distinguiu por dispor de enorme energia intelectual e rara integridade de caráter. Sempre inquieto e propenso à rebeldia, nunca se permitiu a acomodação em determinada posição. Por isso mesmo, em sua trajetória, vamos encontrar numerosas mudanças, às vezes radicais, no enfrentamento das questões que abordou. Tais mudanças, contudo, efetivaram-se numa direção coerente, que levaram Lobato de concepções reacionárias e obsoletas a atitudes avançadas e até mesmo revolucionárias. A coerência de Lobato não pode, por conseguinte, ser encontrada nesta ou naquela manifestação singular, mas no conjunto de sua trajetória e no sentido das suas mudanças. Originário de uma família de fazendeiros de Taubaté, neto de visconde, evoluiu de idéias próprias de um homem da elite aristocrática para a simpatia pelo Partido Comunista.

Creio que, sob este aspecto, o episódio mais ilustrativo sejam os diferentes enfoques através dos quais expressou seu entendimento da questão agrária em nosso país. O primeiro enfoque se cristalizou no Jeca Tatu, tipo criado por Lobato para personificar o caipira indolente e inútil, supostamente o responsável pelo marasmo nacional. Pouco depois, o autor veio a saber que a indolência do Jeca era conseqüência da verminose e imaginou que pudesse ser curado pelo uso de botinas e a ingestão de remédios fortificantes.

Vinte anos depois, a legalização do Partido Comunista, em 1945, deslocou sua atenção para a argumentação de Luiz Carlos Prestes a respeito do latifúndio e da necessidade de uma reforma agrária, que distribuísse terras aos camponeses. Lobato se impressionou e, com honestidade intelectual exemplar, adotou a tese da reforma agrária. Escreveu, então, o folheto Zé Brasil, no qual recriou o caipira, desta vez como o camponês injustiçado e oprimido, vítima dos fazendeiros latifundiários, representados por outro personagem típico: o coronel Tatuíra. Redigido pouco antes de sua morte, o folheto dava testemunho do repúdio do autor às próprias concepções do passado e à sua origem de classe.

Lobato, contudo, não se tornou marxista. Preconizou, para a questão agrária, uma solução inspirada em Henry George, com ênfase no imposto territorial sobre as terras improdutivas. Mas o seu folheto, ilustrado sucessivamente por Percy Deanne e por Portinari, foi impresso em grandes edições e utilizado pelos comunistas no trabalho de conscientização dos camponeses. Hoje, quando a luta de classes se reacendeu no campo, não há dúvidas de que Lobato, contraditoriamente, pode ser lembrado como criador do preguiçoso Jeca e do combativo Zé Brasil.

Os autores do Furacão na Botocúndia promovem o restabelecimento da verdade acerca da posição de Lobato em face do movimento modernista. Baseada na sua crítica à primeira exposição de Anita Malfatti, generalizou-se a idéia de que ele teria sido adversário acérrimo desse movimento. Se foi dura sua crítica à pioneira da renovação das artes plásticas no Brasil, atribuíram-lhe contudo, erroneamente, um efeito traumático que teria paralisado a criatividade da pintora. Na realidade, Anita manteve relações cordiais com o escritor e chegou a fazer a ilustração das capas de livros por ele editados. Além disso, Lobato foi amigo de Oswald de Andrade, entretendo correspondência com o líder da Semana de Arte Moderna. Do ponto de vista literário, incluindo temática, estilo, linguagem e outros aspectos da criação artística, Lobato deve ser considerado um precursor do modernismo, aproximadamente ao nível de Lima Barreto.

No espaço disponível nesta resenha, é impossível abordar outras facetas de um homem que não foi somente escritor, e dos melhores, mas também editor, batalhador pela implantação no Brasil da indústria siderúrgica e da exploração do petróleo, tradutor de obras com influência cultural (como as de H. G. Wells) e incansável agitador de propostas e iniciativas. Remeto os leitores interessados ao livro resenhado, doravante obra de referência obrigatória para quem quiser informar-se sobre o escritor paulista. Por sua coragem e independência, no ambiente repressivo do Estado Novo, ele não escaparia de uma prisão de três meses no Presídio Tiradentes, hóspede compulsório de uma cela que vim a conhecer em 1970, quando passei por aquela instituição carcerária.

Lobato se celebrizou principalmente como o mais importante autor de literatura infanto-juvenil em nosso país. Os seus livros, nesta área, tiveram uma circulação enorme e ganharam traduções em várias línguas. Como é compreensível, estes livros ficaram algo desatualizados para os gostos e as modas dos tempos atuais. Mas é evidente sua inventividade e poder de comunicação. Os tipos que criou continuam a inspirar o teatro e a televisão. Não se pode deixar de reconhecer a contribuição que trouxeram ao arejamento ideológico, através das estórias de personagens brasileiros e da valorização do folclore nacional. Com Lobato, a literatura infanto-juvenil se desprendeu da vassalagem aos paradigmas europeus e se assentou no solo nativo.

Aproveito a oportunidade para registrar o único encontro pessoal que tive com Monteiro Lobato. Em 1947, por tarefa do Partido Comunista, eu era segurança de Luiz Carlos Prestes. Acompanhava-o em suas andanças e, quando ia a certos lugares, como ao Senado da República ou a comícios, trazia comigo, ajeitada na cintura e disfarçada pelo paletó, uma pistola Colt 45, com uma bala na agulha. Felizmente, como deve ser óbvio, nunca precisei recorrer ao mortífero instrumento. Mas, pela função de que estava incumbido, acompanhei Prestes numa visita a Lobato, então residente num apartamento do edifício da rua Barão de Itapetininga, onde até há pouco se localizava, no andar térreo, a Livraria Brasiliense. (A Barão de Itapetininga era, então, a rua do comércio mais chique de São Paulo, nada parecida com a feição atual). Lobato, um homem de baixa estatura, quase como o próprio Prestes, nos acolheu com grande afabilidade, ajudado pela filha na recepção ao ilustre visitante. Decorridos tantos anos, falta-me a memória para recordar o que, durante cerca de meia hora, conversaram o líder político e o intelectual famoso. Apesar disso, vale o registro.

Jacob Gorender é historiador e professor universitário.